Sei que a primeira e fundamental conclusão que vou tirar, nestas reflexões sobre a década de 80, não é politicamente correcta. Eu deveria dizer que não houve uma gestão rigorosa, que falhámos em termos de marketing, que não se apostou na formação (o que é verdade!), que não se explorou o merchandising, que não se profissionalizou (o que acabo por concordar ser uma necessidade… infelizmente!), que não se criaram estruturas, que vivemos agarrados ao passado, que se está sempre a criticar e no bota-abaixo, etc. É isso que fica bem dizer, não o ignoro; mas o que me interessa é vislumbrar as verdadeiras raízes dos problemas e não dizer o que está em voga dizer (e que tantas vezes é o que determinados poderes e interesses querem que nós acreditemos!).
Pois bem: na década nuclear de 80, que começou e terminou em “desgraça”, com a primeira e a segunda descida de divisão da nossa equipa de futebol, mas que nos trouxe uma grande oportunidade entre 84 e 89, com o regresso à 1ª Divisão, o regresso ao pódio, o regresso às competições europeias, duas presenças na final da Taça de Portugal, uma das quais vitoriosa, bem como as receitas do bingo, o que nos faltou foi PAIXÃO (PAIXÃO, e não uma paixãozinha sem horizontes e sem inteligência), OUSADIA (não confundir com aventureirismos eleitoralistas), INCONFORMISMO, RAIVA (no bom sentido da palavra), ALMA, VONTADE INQUEBRANTÁVEL, SENTIDO DE DIGNIDADE e PRESERVAÇÃO DA IDENTIDADE.
Tudo o que sucedeu de mal, e tudo o que de bom podia ter ocorrido e não aconteceu, teve, e continuou a ter, estas questões de princípio por raiz.
Nesta altura, não resisto a reproduzir aqui algumas das análises mais lúcidas eu tenho lido ao longo dos anos e que, com uma ou outra ligeira diferença do que eu penso, retratam muito bem essas questões.
Assim, no site oficial do Belenenses, podemos algures encontrar estas afirmações do Sr. Carlos Costa e Silva (que não faço ideia quem seja, só me importando a valia do que escreveu:
“(…) Não resisti a procurar um espaço onde debitar o que me vai na alma.
Vi ontem o Belenenses - Nacional quebrando com o coração uma ‘jura’ que tinha feito com a cabeça após os 0-5 contra a Académica - não mais ir ao Restelo enquanto esta direcção e administração da SAD permanecessem no poder. Porém, não obstante o conformado cinzentismo das Antas e o ponto heróico contra o Boavista, o coração empurrou-me ainda assim para o Restelo, vício ininterrupto de 27 anos (tenho 30).
Saí como previ que sairia: conformado e rendido a uma realidade - o Belenenses morreu! Já vivi 3 descidas, incluindo a da ‘estreia’, altura em que a descida do Belém era ainda, para muitos, um facto "extra terrestre". Por essa altura e nos anos seguintes o Restelo tinha 4.000 militantes fanáticos. Na 2ª ou na 1ª, os tempos de sobressalto geravam comoções violentas ao pé da estátua do Pepe, para onde as tertúlias militantes acorriam para aclamar os jogadores, fustigar os árbitros ou demolir direcções. Lembro-me desses tempos ainda não muito longínquos em que o Belém ainda tinha alma. Hoje já não a tem. As poucas centenas de resistentes que ainda acorreram à bancada (esqueçam o topo norte cheio das borlas do Montepio que para gozo já basta o que se passa em campo) abandonaram rápida e silenciosamente o estádio, rangendo entre dentes a mesma "jura" que eu fiz com a Académica e que desta vez não vou desfazer.
As causas do fim são múltiplas e precisaria de um dia para as descrever. As mais óbvias e contemporâneas são fáceis de identificar. Sabia-se no final da época passada que a equipa não existia e renovou-se com ela. Vigorou a incompetência, a falta de iniciativa, o medo, o não saber mais, o não querer mais, ou tudo ao mesmo tempo. (…) Não há milagres e cada um tem o que merece. Não adianta vilipendiar a sorte, culpando as lesões ou os árbitros. Comprar 8 jogadores a meio de uma época, dos quais 5 são convocados e 3 são titulares no 1º jogo, só significa que quem escolheu ficar com esta equipa estava condenado à descida antes de a época começar. É uma prova empírica indestrutível. Fazendo apelo aos conceitos de ‘dolo’ que vêm previstos na nossa lei (…), vê-se que esta descida, mais do que indesculpável, é intencional, na forma de dolo eventual ou mesmo dolo necessário. Dizer que a ‘fase da asneira’ acabou é só meia verdade. A meia verdade corresponde à aceitação de que a asneira se fez. O resto da verdade que não se disse é que a asneira não acabou. A asneira esteve plasmada em campo contra o Paços, a Académica e o Nacional. A ‘asneira’ sobe aos relvados semanalmente de azul e cruz de cristo ao peito.
Mas se descer em si já é dramático, a forma como se vai descer é letal. O Guimarães corre risco de descer, mas pulsa, arrastando milhares para casas emprestadas. Se vier a descer, regressa que nem uma mola à primeira liga logo no 1º ano; o Belém desce para se afundar na lama. Portugal é um país latino, de jogadores latinos e balneários latinos. Nesses balneários, presidentes e administradores de SAD’s que não percebam de futebol descem de divisão e apagam clubes. (…)
O problema já não é de agora. O mal do Belenenses tem raiz histórica na forma como cedo se ‘afidalgou’. A tenacidade dos heróis dos anos 30 e 40 fundou um grande clube. As gerações que se lhe seguiram viveram dos rendimentos e... gastaram-nos. Décadas de apagamento cavaram uma erosão profunda na massa associativa e deixaram o clube nas mãos de uma elite dirigente que recusa o envolvimento com o futebol que instintivamente associa a um pouco próprio ‘fanatismo’ e enleva-se com o culto de uma certa ‘forma de estar’ na sociedade Portuguesa, acatando o ‘bom rapazismo’, a inércia, a falta de ambição e uma ideia pateta de que se constroem equipas com cassetes de empresários e dezenas de jogadores à experiência a meia de uma época. A camisola do Belenenses, sozinha, deixou de ganhar jogos no final da década de 70, depois de alguns avisos na década de 60. Vamos em 2004! A reiteração do mérito das ‘continhas certas’, do ‘ecletismo’, dos ‘serviços à sociedade civil de Lisboa’ seria de louvar se não implicasse a MORTE de uma equipa de futebol, no fundo, o coração e a alma do clube. Um respeitável ecletismo (que se deve manter e renovar) não dispensa que se identifique com clareza a prioridade das prioridades. Não dispensa a necessidade de ter à frente do Clube alguém que perceba de futebol e seja ambicioso, alguém que queira construir uma equipa, que chore quando perca, que sonhe em ganhar, que se entusiasme, que faça sentir aos adeptos que dentro de campo existe trabalho e devoção. Para a elite dirigente do Belenenses, porém, vigora a tal "forma de estar" a que aludi, sentimento que passa para o balneário, somando à patente incapacidade em jogar futebol a falta de garra, a falta de amor próprio, a falta de ambição.
(…) a erosão demográfica do clube já dita as suas regras. Não há ninguém que se vislumbre no horizonte para romper com aquilo que mata o Belenenses. A tal elite dirigente, não obstante os ‘ranger de dentes’ dos que fogem como eu fugi para os carros nos últimos dois jogos do Restelo, está sozinha e incontestada por falta de alternativa e oposição.
É provável que esta direcção caia, mas será a mesma elite dirigente a absorvê-la e a tomar conta do clube. A culpa, no fundo, não é dela é minha, é nossa que nada podemos fazer a não ser ‘ranger os dentes’.
Gostaríamos de pedir que não se dê relevância à situação pontual da última década (e ao desânimo de achar que a descida era inevitável) e possíveis comparações com a actual. Tudo isso são micro-questões. Nem, por favor, se despache com um “temos que ser optimistas” esta visão tão profunda do Sr,. Carlos Costa e Silva.
[Nota: há dolo eventual quando alguém pratica (por acção ou omissão) um facto danoso, e prevendo o resultado que ele pode originar, mas confiando que ele não se verificará. Há dolo necessário quando alguém pratica um facto e sabe que essa prática trará necessariamente um facto danoso. Em ambos os casos, o agente não quer o resultado em si, mas a sua prática é consciente, admitindo (no primeiro caso) ou estando certo (no segundo caso) dos resultados advenientes.]
À mensagem que atrás citámos, respondeu, com igual eloquência, o amigo Pedro Patrão, habitual frequentador dos blogs, nos seguintes temos:
“Numa palavra: FANTÁSTICO!!! O que é pena, conforme o Carlos tão bem entende, é que essa mesma classe dirigente aburguesada, que se utiliza do poder no CFB de modo a aparecer colunavelmente em certos meandros da sociedade civil e política, mas que ao mesmo tempo desdenha o futebol, recusa-se a aparecer por causa e tem vergonha desse mesmo futebol, dito do povo, é a mesma, dizia eu, que mantém este site (…)
O meu pai, Oliveres do Nascimento Lopes Patrão, foi sócio do Belenenses durante 65 anos, de 1933 até 1998, data da sua morte. Na altura era o sócio nº100. Foi o seu último número no Belém. Foi tesoureiro, 2º cargo mais importante da época a seguir ao Presidente, na gerência de 1948, dois anos depois de sermos campeões. Não reconheço nos actuais e mais recentes dirigentes a mesma estirpe destes homens de antigamente, perdoem-me a imodéstia.
Este definitivamente não é o nosso Belenenses. Direcção, SAD e treinador não são o meu Belenenses. Porque são pequeninos nas suas ambições, nos seus sonhos, nos seus desejos, na sua raiva de diariamente quererem fazer melhor do que no dia anterior, porque fogem das suas responsabilidades, porque arranjam sempre desculpas para os seus insucessos, porque não dão a cara nos momentos difíceis, porque são incapazes de dar um murro na mesa na altura certa. Porque jogam para empatar, em vez de querer vencer. Porque jogam para não perder, quando deviam jogar sempre para tentar ganhar. Porque em vez de querer subir, só tentam não descer.
Mas, é verdade Carlos, os culpados não são eles, somos nós. Somos nós todos que não nos assumimos como alternativa a este conjunto de instalados, cujo único objectivo é o poder, as colunas sociais, os convidados de elite em certos jogos por forma a justificar mais um "beberete" junto do camarote da Direcção, mas que ao mesmo tempo têm vergonha de se misturar com o ‘povo’ a ver um jogo de futebol, de aparecer na Televisão para dizerem que são Presidentes de um Clube de Futebol.
A culpa é nossa, Carlos, mas esteja certo de uma coisa que eu já aprendi em 37 anos de sócio, desde o dia em que nasci. Eles não se importam que nós deixemos de ir ao Estádio, se os tais ‘fanáticos’ deixarem de ser os 4.000 de há vinte anos e passarem a ser só os 200 ou 300, conforme bem vimos nos jogos da Taça. Isso apenas lhes vai dar mais uma desculpa para a sua incompetência, como são os árbitros, as lesões, o ‘azar’, a chuva, o sol, o vento, o relvado, etc... Até quando, Carlos? Cabe a nós e apenas a nós respondermos.
Saudações azuis, sócio nº 1771”.
A propósito ainda da mesma mensagem, reproduzimos igualmente um comentário não assinado, que merece a nossa plena concordância:
“É de facto uma mensagem profunda, rigorosa e verdadeira. Com coração - paixão - e com cabeça - lucidez - ao mesmo tempo. Retrata exactamente os factos, e não os que aconteceram nos últimos meses mas os de décadas. O pior é, sim, isto mesmo: a morte progressiva da Alma Belenense. A subserviência, o qualquer coisa serve. A falta de paixão, de ambição, de orgulho no que fomos. É por isso que o Restelo, ano a ano, fica mais deserto. Tudo isto é triste... mas é verdade e fico contente por, enfim, alguém o ter exposto tão bem, fora das análises superficiais e imediatistas”.
E, na mesma esteira, que coliga factos passados com consequências presentes e, provavelmente futuras (e tão mais duradouras e nocivas, quanto mais tempo se passar até se começar a anular e inverter as causas), citamos também uma parte de um e-mail que um amigo nos enviou, a seguir ao recente jogo com o Celta:
“O aspecto das bancadas do nosso lindo Estádio, estava desolador. Mas se calhar, parte da resposta para que tal acontecesse, esteve naquele lamentável (para ser simpático...) erro do locutor no final da partida.
Já no último Belenenses-Braga, o meu pai, que para estas coisas do Belém tem um ‘faro’ apuradíssimo, se tinha insurgido pelo facto de o locutor de serviço no Estádio (por sinal o mesmo) ser ‘demasiado mole’ a puxar pelo público. Dizia ele, que o nosso grito era "Belém! Belém! Belém!" e não "Beleeeeeem, Beleeeeeem" (nem lhe ponho os pontos de exclamação, porque aquilo realmente não tem alma nenhuma...).
Entre tantos belenenses, não haverá um, com boa colocação de voz, para nos dar as informações sobre o jogo, para puxar pelo público com alma azul, para lembrar e pedir o apoio no último quarto-de-hora à Belém (…)?
Já agora acrescento-lhe que, depois do jogo com o Braga, o meu pai me disse ‘não me convides outra vez para ir ver o Belenenses". E olhe que no início, até elogiou bastante as melhorias do Estádio e chorou (é um ‘defeito’ de família, quando se trata do Belenenses...) ao aplaudir o grande Di Pace. Mas ele viu o seu Belém ser campeão em 46, e aquilo a que tinha assistido, para ele não era o Belenenses...
(…)
O que aconteceria, se no Estádio do Dragão o locutor pedisse ‘... e agora uma salva de palmas para a nossa equipa do Benfica!’? (…) Mas nós não... Para quê preocuparmo-nos, se o Benfica ‘até nem é um dos nossos maiores rivais", afinal"os nossos rivais são o Boavista, o Marítimo, o Guimarães...", para não dizer ‘o Alverca, o Moreirense...’”.
Mais uma vez, se tocam em pontos fundamentais. E não é apenas o simples adepto inconformado (mas cuja memória não se confina às últimas semanas ou épocas) que faz estas observações. Assim, quase a terminar o seu livro “História do Clube de Futebol Os Belenenses”, em 1991, escreveu Acácio Rosa:
“O Clube corre um risco imenso, nos dias de hoje. Não será um risco mortal, mas é certamente o de ficar longos anos em situação de triste subalternidade a clubes que já acompanhou em décadas contínuas.
Tem-se clara impressão (da minha parte certeza) que nos últimos anos, a grande maioria dos nossos dirigentes (sem mística clubística), apenas desejam ser directores, misturando-se de apoiantes e colaboradores em campanhas eleitorais ou em séquito de aduladores do presidente para deambularem nas sessões solenes… nos camarotes (…) são estes ‘beléns’, os culpados da inércia”.
Visto o essencial, tentaremos explicitar aspectos mais particulares nos próximos artigos.
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