quarta-feira, agosto 11, 2004

A Década de 80 (cont.) - Parte IV: E Voltam as Desilusões... - Secção IV: O Naufrágio


Vencedora nas eleições realizadas em Maio de 1990, e empossada em 4 de Junho, a Direcção inicialmente liderada pelo Major Ferreira Matos (digo “inicialmente”, pois a curto trecho outras pessoas assumiram a liderança efectiva) demonstrou logo ao fim de poucos dias no que ia dar aquela mistura de pseudo-modernismo e de contentinho-da-Silva a que nos referimos. E fê-lo com a altivez e o auto-convencimento de que “agora é que se está a ir bem!” a que já nos acostumaram todos aqueles que mais enterraram o clube. De facto, a tal vertente “Espectáculo” anunciada foi cabalmente cumprida – mas de que maneira!

Vamos lembrar apenas alguns episódio, novamente sob a forma de tópicos, pois, de outro modo, nunca acabaríamos de desfiar o rosário.

* Uma vez que o Farense nos tinha eliminado da Taça, e o seu treinador era Paco Fortes, foi este rapidamente (e com o seu quê de atitude masoquista…) elevado à condição de semi-deus. Ele e só ele é que podia fazer e acontecer, ele e só ele é que podia ser a nossa solução, ele e só ele é que era ambicioso, jovem, conhecedor de como se puxava pelos jogadores, etc.

Assim, um “belo dia”, numa conferência de imprensa, o Major Ferreira Matos e outros dirigentes anunciam que Paco Fortes ia ser o próximo treinador do Belenenses.

Entretanto, o treinador com contrato em plena vigência, Moisés de Andrade, é apanhado de surpresa no Brasil, onde tinha ido passar férias, e sabe via rádio, ouvindo um excerto da tal conferência de imprensa, que o treinador ia ser outro!

E, por sua vez, Paço Fortes afirma peremptoriamente que não tinha nenhum acordo com o Belenenses, que só tinham falado e que ainda estava a pensar. Um ou dois dias depois, anuncia que prefere continuar no Farense! E o Belenenses, naturalmente, passou a ser objecto de gozo!

* Sem nenhuma outra solução na manga, passam-se semanas sem treinador definido. O ex-treinador Moisés Andrade chega a Lisboa para acertar contas, o seu despedimento é confirmado e, entretanto, passados dias, os dirigentes vêm afirmar que esperam que ele os ajude a preparar a nova época, enquanto se não contrata novo treinador!

* Na mesma altura, o clube vive cenas ao melhor estilo surrealista. O Presidente preocupa-se apenas em reservar no Estádio uma sala “onde os jovens possam iniciar-se a cantar Fado ou Rock”. Era, ainda, a tal vertente espectáculo! Para um clube recreativo, estaria muito bem. Agora para um clube (perdão, para uma empresa; na altura tinha que se dizer “empresa” em vez de “clube”: era a palavra de passe para os grandes iluminados de então!) como o Belenenses…

* Começam, entretanto, ainda sem treinador definido, a ser anunciadas as dispensas, contratações e… empréstimos para a próxima época futebolística. Sai o utilíssimo central Oliveira, que equilibrara a nossa defesa a meio da época anterior (porque, como repetiam em todas as ocasiões os novos dirigentes, “arranja-se muito melhor e muito mais barato”), o avançado Jorge Silva e o defesa esquerdo Grosso. Entram o defesa esquerdo Nito (jogador útil, embora longe de justificar o alarido que Delgado, na altura, fez com ele: “Ficarei muito surpreendido se o Nito dentro de dois ou três anos não for titular da selecção”) e o zairense Kobla, que, é certo, nos fez pensar em Mapuata, quando foi anunciado. Só que havia duas diferenças: o Mapuata era avançado centro e Kobla era médio-extremo esquerdo; Mapuata tinha vinte e poucos anos, Kobla, pelo aspecto, teria os mesmos e mais outros tantos! De facto, Kobla, anunciado oficialmente como tendo 27 anos, tinha aspecto de uns 47, e depois de uma corrida de 20 metros, precisava de descansar quase 20 minutos….

Bom, mas ainda vieram mais três! Do F.C.Porto, concomitantemente com o restabelecimento de relações, vieram dois a título de empréstimo (escuso de repetir aqui o que penso de empréstimos vindos de outros clubes portugueses): Morato e Raudnei. Do primeiro, que tinha sido internacional, devo dizer, com justiça, que vestiu com muito respeito a nossa camisola, sendo até um dos melhores jogadores dessa infeliz época. Mas, justamente por isso, no fim da época, o FCP quis que ele regressasse à base. Raudnei era apresentado como o super-reforço. Havia sido contratado pelo Porto dois anos antes, e tinha sido emprestado ao Dep. Corunha, onde quase não tinha jogado (apesar de, na altura, aquele clube espanhol estar, se não me engano, na 2ª Divisão). Dizia-se que ia explodir no Belenenses! Depois de um ou outro golo nos jogos de preparação, marcou, durante o campeonato inteiro (nesse ano, com 38 jornadas) um total de 2 (dois) golos, um dos quais à 2ª jornada (marcando apenas um durante as restantes 36!).… E, todavia, sabe-se lá porquê, esteve muitas vezes a tirar o lugar a jogadores como o utilíssimo Chico Faria, um dos grandes heróisda vitória na Taça e melhor marcador das 2 épocas anteriores (e numa delas, com uma lesão que o impediu várias jornadas) ou Chiquinho (o tal que não podia sair, sendo o pretexto para a já referida manobra eleitoralista, da tal lista – a vencedora – que não fazia promessas nem cedia a eleitoralismos..).

Do Benfica, veio Chalana. Porquê? Porquê? Porquê? Não cabe nenhuma dúvida que Chalana foi, num determinado momento, um jogador excepcional; mas era evidente que estava acabado. Nas últimas épocas jogara meia dúzia de jogos e, mesmo esses, raramente actuara os 90 minutos inteiros. Para o seu lugar, tínhamos Gonçalves, que estivera em plano excepcional na época anterior e que também foi parcialmente “tapado” pelo ex-benfiquista. Pior ainda: nas mesmas condições (fim de carreira) esteve quase para vir também o Diamantino (o tal que após a final da Taça tecera deselegantes considerações sobre o nosso clube; declarações que, em má-criação, só foram ultrapassadas pelas de Pacheco que, porém – como a memória é curta, ou como ela é facilmente espezinhada ! – haveria de vir a representar o Belenenses no tempo de Matias / Alves).

Nunca me esquecerei do que li num jornal da época: “Os dirigentes azuis, tal como aconteceu com Chalana, já fizeram saber que não gostariam nada de ver Diamantino a treinar atrás das balizas”. Incrível! O Belenenses ao serviço de jogadores! Incrível: um clube com a história fantástica de 70 anos (na altura) a ser chamado (como era previsível) “o clube de Chalana”…; títulos nos jornais do género “Chalana voltou a perder”…; e, apesar disso, gente na bancada dos sócios, cada vez que ele era substituído, a aplaudi-lo em delírio (alguns, como nunca os vi fazer, em anos e anos, a briosos jogadores do clube)!

* Esses aplausos delirantes a Chalana, é um dos factos dessa época que não consigo esquecer. Mas, infelizmente, há outros:

- Uma senhora, ainda jovem, que durante um jogo em que o Beleneneses se encontrava a perder e, assim, a deslizar ainda mais para a descida de divisão, estava em êxtase por, na rádio, ouvir que o Benfica havia chegado à vantagem num outro jogo (e, assim, era capaz de ganhar o campeonato ao Porto, etc…);
- A mesma senhora, que, para cúmulo, dizia que já o seu avô fora do Belenenses, num outro jogo que igualmente perdemos, passou metade do tempo a falar das guerras Benfica-Porto, e a repetir que estava desejosa que o (empresário) Manuel Barbosa despejasse o saco contra Pinto da Costa (o que acho que não fez, mas tanto se me dá). Digo metade do tempo, porque a certa altura saí dali para outra parte do Estádio;
- Na antepenúltima jornada, sabendo-se que precisávamos de ganhar esse e os restantes jogos para nos salvarmos da descida, e estando nós a perder por 1-0 (com o União da Madeira), ver um grupo de sócios completamente alheios ao que se estava a decidir e, a 2/3 minutos do fim, perante o nosso desespero, estarem entretidíssimos porque “o Belém talvez ainda chegue ao empate !!!”
- Um senhor que, no penúltimo jogo do campeonato, numa das bancadas dos sócios, estava furioso porque com a derrota do V.Setúbal contra nós, eles (“uma equipa do Sul”) também podiam descer; portanto, o que era bom era o Belenenses perder!
- A inqualificável tentativa de expulsar Acácio Rosa de sócio, do que falarei adiante.

* Finalmente, encontrou-se um treinador: Henry Depireux, que assim voltava ao clube. Ele rapidamente avisou que, com aquele plantel, não podíamos ir longe; porém, os dirigentes, em pleno autismo, anunciavam as suas previsões: “2º lugar, no mínimo” (sic). Ficámos em 19º entre 20 concorrentes…

* Para o Campeonato, depois de uma derrota por 2-0 em Braga, obtivemos uma vitória por 2-0 sobre o Chaves. Seguiram-se 7 derrotas e um empate. Resultado: à 11ª jornada, em 22 pontos possíveis, tínhamos 3! Entretanto, já saíra Depireux e viera o brasileiro António Lopes.

* Em Novembro de 1990, vários dos dirigentes, reunidos em casa do Vice-Presidente José António Matias, resolveram afastar o líder (nominal) da Direcção Major Ferreira de Matos. Segundo o Presidente substituto Joaquim Cabrita, “o major Ferreira de Matos continua a desestabilizar o clube, porque ainda não recuperou do esgotamento cerebral que sofreu em Junho passado. Esta direcção sente-se traída pelo presidente, porque na altura das eleições prometeu disponibilizar 150 mil contos até meio milhão, mas essas expectativas saíram defraudadas” (!!!).

* Pelo meio (início de Outubro), houve eleições para o Conselho Fiscal, que se havia demitido. A lista liderada por Luís Santos (sim, esse mesmo!) venceu a que era encabeçada por Acácio Rosa! Parece que ainda não se tinha aprendido! Dissera Luís Santos: “Esta Direcção…deixem-na trabalhar em paz!”. Dissera Acácio Rosa: “Prendam-me se não houver desvios de dinheiro”; “O Cabrita e os acompanhantes vão todos para o olho da rua!”. De resto, já havia a Direcção instaurado um processo disciplinar a Acácio Rosa - “Um velho gagá”, dizia-se. Incrível! Um processo disciplinar a um homem com quase 80 anos, com quase 65 anos de sócio, que fora tudo no clube - Presidente, atleta, seccionista, historiador, introdutor de modalidades (andebol e voleibol), membro de Juntas Directivas em horas dramáticas - , condecorado pelo Belenenses com tudo quanto era possível e justo, e ainda por instâncias oficiais portuguesas, pelo Governo Francês! Incrível, sim, e inqualificável: um belenense enorme, inflamado de uma paixão como talvez nunca outra igual venha a existir (veja-se o texto de ontem), por pouco não era expulso de sócio! Onde pode chegar a prepotência, a cegueira – e, também, o seguidismo acéfalo, a pretensão do unanimismo! Acácio Rosa quase expulso de sócio… por erguer a sua voz contra o que se passava no clube!

* Finalmente, os sócios começam a organizar a reacção ao tremendo estado de coisas. Forma-se uma claque vibrante (independentemente de continuar a existir a Fúria Azul) e muitas vezes é praticamente a força desse clamor que empurra a equipa para algumas vitórias (ainda me recordo, comovido do que puxámos pela equipa num jogo contra o E. Amadora, que ganhámos por 2-1). Mas essas vitórias foram insuficientes…continuávamos abaixo da linha de água e todo o clube era varrido por um autêntico tufão… com a nau azul a ir pique…

* Começam os movimentos para convocar uma AG (o próprio Major Ferreira de Matos, impotente face à situação, mas mostrando ser homem de bem, ele próprio também incentiva a ideia). Após algumas manobras dilatórias, essa Assembleia histórica teve lugar em 17 de Dezembro de 1990, com o Pavilhão do Restelo repleto de milhares de sócios. Arrepio-me ainda, só de me lembrar. Era a vida que no Belém ainda restava, a querer vir a superfície. A indignação era tanto, que os membros da Direcção quase não conseguiram falar. Veio então a intervenção do Major Baptista da Silva: traçou um resumo da situação do clube e, encolhendo os ombros, num gesto de interrogação, perguntou: “E Agora?...”. No meio do silêncio que se fez, concluiu ele: “Agora, terá de se entregtr o clube a quem seja capaz de rapidamente recuperar o Belenenses social, económica e desportivamente e preparar novas eleições, porque ninguém que tenha o clube no coração e na inteligência tem o direito de recusar a sua participação, pois essa atitude não seria de comodidade mas de cobardia moral”.

A reacção quase uníssona do Pavilhão facilmente fez prever o que se seguiria. Foi apresentada uma proposta de demissão da Direcção e sua substituição, até novas eleições, por uma Junta Directiva constituída por Baptista da Silva, Agostinho Carolas, Florentino Antunes, Mendes Pinto e Luís Pires.

Colocou-se a proposta à votação: nem se chegaram a contar os votos. Era uma floresta de braços no ar, a manifestar o sim. E logo esses braços, e essas mãos, se uniram para provocar uma trovoada de aplausos, enquanto as vozes se erguiam no velho grito” Belém”! Belém! Belém!” E começou a tocar o hino…”Ostentado o nosso emblema / Consagrado e popular… Para a frente Belenenses / Com a certeza de vencer!”. A esperança renascia, ao menos um pouquinho. Sim, a dignidade fora restaurada!

* A Junta Directiva fez um bom trabalho. Mas, no que toca ao futebol, foi já impossível evitar a descida de divisão. Para substituir António Lopes, foi-se novamente buscar o treinador da época anterior, Moisés de Andrade. Este devolveu um pouco de alegria e elán à equipa mas já era tarde. O nervosismo era muito e, em momentos chave, falhou-se…

* Deve-se, contudo, reconhecer que, da mesma forma como, sinceramente, o ano passado o Belenenses merecia ter descido de divisão, naquela época não tinha equipa para descer. Não era um plantel brilhante, o campeonato seria sempre medíocre, além do mais tirou-se todo o brio e orgulho aos jogadores, mas não era equipa para descer. Além de toda a situação vivida no clube, teve azar em momentos decisivos – lembro-me, por exemplo, do golo sofrido em Alvalade no último minuto; sofreu arbitragens inqualificáveis, sem exagero, num quarto dos jogos (para mais…); teve um goal-average bastante equilibrado, sendo até das melhores defesas (ao contrário, no ataque); o campeonato foi estranhíssimo, com um bloco cerrado de uns 15 dos 20 participantes, desde o 5º lugar para baixo. Fizemos 29 pontos. Com 33 alguns ainda desceram, com 36 alguns foram às competições europeias…

* A propósito de arbitragens, relembre-se que foi nesta época que ocorreu o célebre caso Francisco Silva. Este árbitro, na sua carreira, começou por ser claramente tendencioso a favor do Benfica, tendo depois “virado o bico ao prego” a favor do Porto. Até que (como às vezes sucede nestes casos de cata-ventos), caiu em desgraça. Assim, o Presidente do Conselho de Arbitragem, Dr. Lourenço Pinto (sócio do FCP e actualmente advogado do Major V. Loureiro), armou-lhe uma cilada. Num determinado jogo, combinou com um Presidente de um clube (o Penafiel) que este oferecesse 1.000 contos (há 15 anos, tinha outro valor!) para beneficiar aquela equipa em desfavor de outra. O presidente do Penafiel, pouco antes do jogo, assim fez. Chico Silva aceitou, agradeceu e guardou. Alegou, quando confrontado pelo Presidente do C.A. (com as gravações na mão) que tencionava posteriormente denunciar o caso! Agora bem: quem é que ia ser prejudicado? Nem mais nem menos que o Belenenses!!! Podemos pensar que foi um acaso… ou podemos pensar que o Belenenses é a vítima ideal. E se é, porquê? Vale a pena reflectir!

E termina assim a abordagem dos factos da década de 80. Os próximos artigos serão dedicados a extrair reflexões e ilações.

Termina em tristeza, num capítulo fatal da história do clube. Ter descido uma vez fora mau mas…poderia ter ficado como algo que acontece, constituindo entretanto essa chicotada um estímulo para o clube ir retomando o seu lugar. E, na altura da 1ª descida, pura e simplesmente não havia dinheiro. A 2ª descida, essa, foi mais inexplicável e, sobretudo, indesculpável. Um misto de novo riquismo, de chavões de boa gestão e de patetices bacocas e balzaquianas provocou um rombo que, em tão poucos meses, quase nem fazendo de propósito poderia ser pior!

Lembremos que esta nova queda na 2ª Divisão não foi no ano a seguir à vitória na Taça. É preciso desmistificar essa ideia, propalada por jornais, comentadores e até dirigentes. Acho que o objectivo não é inocente: pretende-se que acreditemos que o Belenenses tem de se conformar com a mediana. Diz-se: “Não tinha estrutura para aquilo, logo a seguir foi o desastre…”. É FALSO! Logo a seguir, apesar da falta de ambição, veio um 6º lugar e uma presença nas meias-finais da Taça. Duas épocas depois é que se desceu – e não por falta de “estruturas” mas, sim, devido a uma série incrível de palermices!

Esta descida representou, pois, um triste marco na história do Belenenses: o abdicar definitivo (?) da sua ideia de grandeza e o aceitar-se como clube vulgar, que pode naturalmente andar no sobe-e-desce…

Gostaria de dizer que espero que nunca mais se repita. Mas já repetiu, e com métodos muito semelhantes, na fase José António Matias (que em alguns aspectos, até foi menos disparatada do que a incrível experiência de 90/91).

Será que aprendemos a lição? Receio que não… mas oxalá que sim!


“excerto do Jornal de Candidatura de Ferreira Matos / Cabrita, condenando as promessas…”


“Lista liderada pelo Major Ferreira de Matos nas eleições de 1990”




“O Major Ferreira de Matos e Joaquim Cabrita, em material de propaganda das eleições de 1990”


"Os corpos sociais antes do "cataclismo" de 90/91"




"Material de propaganda da lista derrotada nas eleições de 1990"

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