(Artigo da autoria de Eduardo Torres)
As ruas, as casas e os carros de Portugal enfeitados de bandeiras transporta-nos, por associação de ideias, para um dos episódios mais marcantes e dramáticos da história do Belenenses e até mesmo do desporto nacional.
O que é que está na base dessa associação de ideias? Eram as ruas de Belém – de Belém e da Ajuda, particularmente as contíguas ao Estádio das Salésias – que também se haviam coberto, que também se haviam engalanado de bandeiras, de colchas, de flores e de símbolos e cores azuis para o que deveria ser a festa do 2º título de Campeão Nacional do Belenenses.
Mas, fatidicamente, aquele fim de tarde de um Domingo no fim de Abril de 1955 haveria de terminar não na festa sonhada e merecida mas num mar de lágrimas... o dia em que Belém se encheu de lágrimas!
Por ironia do destino, foi a segunda vez que Belém assim chorou de tristeza, revolta e impotência, e a primeira fora 24 anos antes, com a morte daquele com cujo nome, justamente se baptizou o Estádio das Salésias, onde se viveu o drama daquele 24 de Abril de 1955: José Manuel Soares “Pepe”.
Há quase 40 anos que comecei a ouvir esta história, antes de tudo pela boca do meu pai. Cada vez que alguém dava por adquirida uma coisa desejada que ainda era incerta, lá dizia ele: “Cuidado! Começam a deitar foguetes antes da festa! O Belenenses perdeu aquele campeonato mesmo no fim por começarem a lançar foguetes e o José Pereira...”.
E foi mesmo assim! Infelizmente, muitos do que presenciaram aquele acontecimento já não estão entre nós e, portanto, (já) não há assim tantos que tenham assistido ao vivo e que, portanto, conservem na memória, tanto a dos sentidos como a da alma, o que nós só podemos imaginar, com o que nos contaram, com o que lemos.
Mas... tentemos, sim, imaginar, tentemos situar-nos nessa tarde. Faltam 4 minutos, só 4 minutos para terminar o último jogo desse Campeonato Nacional; o Belenenses está a ganhar 2-1 ao Sporting, essa vitória assegura-lhe o título, os verdes estão praticamente conformados, os jogadores da camisola azul com a Cruz de Cristo trocam a bola entre si, guardam-na (sobretudo o mestre Di Pace, exímio nisso, com a sua fina técnica), esperando o apito final do árbitro. O Belenenses parecia irresistível: depois de um mau começo de campeonato, uma arrancada extraordinária, uma grande sucessão de vitórias, a chegada ao 1º lugar, a sua manutenção, a vitória no último jogo, frente a um rival forte, mais um título, a reafirmação da grandeza, da força, da alma belenense... E imaginemos, porque é assim que nos contam: as ruas cheias de flores, bandeiras e colchas nas janelas e nas sacadas, em sinal de apoio, o clamor “Belém! Belém! Belém!” (sempre o nosso grito de guerra, seja em raiva ou em triunfo), os chapéus que se atiram ao ar em sinal de júbilo, os abraços que se trocam, os foguetes que estalam à volta do estádio... E de repente, sem que nada o fizesse esperar, numa jogada inverosímil, o Sporting empata, e oferece o título ao Benfica... e os corações azuis estilhaçados, pelo menos dilacerados, com a força do destino que nos atingiu tão duramente, como nunca fizera, nem voltou a fazer, a nenhum outro clube!
Mas contemos a história com um pouco mais de pormenor e, agora, um pouco menos de emoção.
O Belenenses não começara bem o campeonato e, à 7ª jornada, já estava a 5 pontos do Benfica. Após uma reaproximação, perdeu à 12º jornada com o Braga, em casa, ficando a 4 pontos do líder Benfica, e a 3 do Sporting e do Braga (e já agora, com 1 ponto de vantagem sobre o F.C.Porto). Então, começa a cavalgada belenense, com vitórias seguidas, ambas fora, sobre o Sporting (2-1) e sobre o Porto (1-0), na última jornada da 1ª volta e na primeira da 2ª volta. Até ao final, foram 14 jogos seguidos sem perder, com apenas 3 empates, incluindo o do último jogo, e também o que disputou no recém-inaugurado Estádio da Luz (0-0), à 20ª jornada. O Belenenses alcançou a liderança à 23ª jornada, vencendo o Sporting da Covilhã por 4-0 enquanto o Benfica perdia por 3-0 com o F.C.Porto. Nas 24º e 25º jornada, com vitórias sobre o Lusitano de Évora (2-0, em casa) e sobre o Braga (3-2, fora), o Belém manteve a liderança.
Assim, à entrada da 26ª e última jornada, o Belenenses estava em 1º lugar com 38 pontos, o Benfica vinha a seguir com 37, o Sporting ocupa o 3º lugar com 36. Só o Belém depende de si próprio para ser campeão. Sê-lo-ia ganhando ao Sporting, ou até empatando, caso o Benfica, na Luz, não ganhasse ao Atlético. O Benfica depende do resultado do Belenenses. Poderia ser campeão se, nessa última jornada o Belenenses perdesse e eles empatassem ou se, como aconteceu, ganhassem e o Belenenses empatasse. O Sporting ainda tinha hipóteses mas muito remotas. Para conquistar o título, teria que combinar dois factores: ganhar ao Belenenses e esperar que o Benfica perdesse.
E como foi essa última jornada? O Benfica ganhou ao Atlético, com relativa felicidade, por 3-0 mas convencido de que tal vitória de nada lhe valia (na altura, quase não havia transístores portáteis para ouvir os relatos). Porque, entretanto, o que se passava no Estádio José Manuel Soares Pepe (ou, tout court, das Salésias)?
O Belenenses entrou em campo com a seguinte equipa: José Pereira; Pires e Serafim; Carlos Silva, Figueiredo e Vicente; Di Pace, Dimas, Perez, Matateu e Tito (ainda o 2-3-5 daqueles tempos!).
O jogo começou da melhor maneira para nós. Logo aos 2 minutos, Perez marcou para o Belenenses, após centro de Dimas. Tudo bem encaminhado…até aos 17 minutos: Penalty contra o Belenenses, por falta desnecessária (os nervos?...), e o empate para o Sporting. Aos 31 minutos, o primeiro caso do jogo: Di Pace bateu o guardião sportinguista mas o árbitro anula o golo, e parece que bem, por mão do mestre argentino.
Aos 42 minutos, regressa a alegria: Matateu, de cabeça, após centro de Dimas, volta a pôr o Belenenses a ganhar por 2-1. E assim se chegou ao intervalo.
Na 2ª parte, mais dois ou três lances polémicos: um golo anulado ao Belenenses (parece que bem); uma bola que terá estado dentro da baliza do Sporting mas sem que o golo fosse considerado (e aí parece que o árbitro errou) e ainda um eventual penalty (não assinalado) sobre Matateu. O desafio corria célere para o final, e quase só se jogava no meio campo do Sporting, que não criava qualquer jogada de perigo, enquanto o Belenenses perdera já algumas oportunidades de fazer o 3º golo. Então, aos 86 minutos, houve um ataque do Sporting, através de um lançamento longo, um defesa do Belenenses (Figueiredo, segundo ouvi contar) terá escorregado, há um primeiro remate de um jogador do Sporting a tabelar num defesa azul e a sobrar para Martins, que empatou, apesar da tentativa desesperada de Martins. Antes de terminar, Matateu ainda falhou uma daquelas oportunidades… que não costumava falhar.
Os jogadores belenenses ficaram muito tempo em campo, incrédulos, muitos banhados em lágrimas, alguns prostrados no chão, em desânimo e angústia.
E em lágrimas permaneciam ainda muitos já nas cabinas, num silêncio tremendo, enquanto o nosso treinador Fernando Riera, segundo se contou no jornal “A Bola” do dia seguinte, “bastante nervoso, media a cabina a passos largos, pontapeando de quando em vez uma hipotética bola…”. Segundo confessou 40 anos mais tarde em entrevista ao mesmo jornal, arrependia-se de não ter feito recuar mais alguns jogadores, para segurar o resultado. E à mesma distância, dizia: “De todo o coração, digo que o Belenenses foi o meu primeiro e grande amor futebolístico”.
Os jogadores mal conseguiam dizer o que quer que fosse. Alguns declinaram prestar quaisquer declarações e mesmo os que falaram mal lograram articular os seus pensamentos. Eis, não obstante, algumas declarações recolhidas no jornal “A Bola”. José Pereira: “Jogo excelente mas péssima arbitragem porque a considero prejudicial ao meu clube”; Pires: “Fizemos uma prova excelente…que infelicidade!”; Serafim (o capitão): “Amanhã falarei…Hoje deixem-me. Vou-me meter na cama!”; Carlos Silva: “Jogámos melhor mas um golpe de infortúnio tirou-nos o campeonato”; Figueiredo: “Falar? Para quê? Não tenho nada a dizer, ou melhor, não posso dizer nada”; Matateu: “Meu Deus! Não sei…só sei que vi o juiz de linha numa jogada em que Carlos Gomes se estirou sobre o risco de baliza parta deter uma bola que rematei, correr para o centro do terreno, indicando, provavelmente, que a bola entrara” (mas o árbitro assim não entendeu); Perez: “Que hei-de eu dizer? Que empatámos? Que perdemos imerecidamente o campeonato?”
Mas no lado do Sporting havia alguém que, tendo cumprido o seu dever profissional, tinha igualmente o coração despedaçado, porque era o azul de Belém que ele amava: D. Alejandro Scopelli, o grande jogador belenenses dos anos 30 e 40, e mais tarde, em 72/73, o treinador que nos conduziu a um outro 2º lugar. Toda a história dos 3 treinadores (do CFB, do SLB e do SCP) nessa época e no drama desse dia, é em si mesma uma ironia. Já bastava a situação de Scopelli, que assumira o lugar de treinador do Sporting a meio da época. Mas, por sua vez, o treinador do Belenenses era Fernando Riera, que cerca de uma década de mais tarde haveria de conquistar um título… ao serviço do Benfica; e o treinador do Benfica era Otto Glória que, 5 anos mais tarde, treinou o Belenenses num ano em que ganhámos a Taça de Portugal, em que vencemos a Taça de Honra com uma goleada de 5-0, e em que, na última jornada do Campeonato, tirámos ao Benfica, não o título, mas a possibilidade de ser campeão invicto (já em 42-43, o Benfica também só perdera contra o Belenenses).
Mas voltemos ao grande Scopelli. Após o jogo recusou-se a prestar declarações; à noite telefonou a Riera, manifestando o seu pesar. No dia seguinte, foi procurar o seu amigo belenenses Calixto Gomes e, com ar triste e abatido, pediu desculpa pelo sucedido! Três dias depois, presta então declarações públicas, ao jornal “A Bola”. E fê-lo nestes termos, que mostram bem por que equipa, no fundo do coração, ele realmente torcia: “A minha opinião é a de que o Belenenses adoptou o melhor sistema para a sua equipa. A prová-lo está o facto de a sua baliza não ter, verdadeiramente, passado por momentos de grande perigo. O golo de Martins saiu duma jogada confusa. Com a vantagem de 2-1, os jogadores do Belenenses cobriram bem a bola e lançaram bons contra-ataques que poderiam ter dado, sem favor, outro golo. Creio, sinceramente, que o plano do jogo era o melhor e se o resultado tivesse terminado 2-1, como podia ter acabado, todos agora elogiariam o sistema”.
E, a terminar, foi ainda mais claro: “Falei como profissional. Agora, no aspecto sentimental, confesso que o resultado não foi o melhor e lamento muito que o Belenenses, que tinha feito o bastante para ser campeão, não tenha conseguido o seu objectivo”. Alejandro Scopelli, um belenenses eterno!
É impossível não pensar como teria sido o futuro do Belenenses se não tivesse havido aquele acidente. Foi numa altura crucial e, por isso mesmo, muito má: pouco depois consumar-se-ia o abandono das Salésias, em que tanto se investira em termos de dinheiro, de esforço e de coração, abandono arbitrariamente imposto por um alegado plano de urbanização que nunca se efectivou; construiu-se, a partir de uma pedreira, o Estádio do Restelo (que valorizou todo o espaço circundante, o qual passou a ser zona de luxo, valorizando em flecha os terrenos, com que a Câmara fez ricos negócios de venda), e tudo o que se investiu no novo estádio deixou o clube com uma dívida enorme que se tornou galopante, com terríveis consequências; estava a chegar a época do verdadeiro profissionalismo, ainda que não tão “feroz” como o de hoje; em breve viriam as competições europeias, com toda a projecção que trouxeram aos clubes que nelas podiam brilhar, situação que o Belenenses não teve condições de aproveitar. Se tivesse ganho esse título, haveria um Belenenses mais forte para enfrentar todos esses desafios, para continuar a ombrear lado a lado nas compitas com os seus rivais tradicionais, especialmente os de Lisboa, isto é, o Benfica e o Sporting. Repare-se que se tivesse ganho aquele título, o Belenenses passaria a ter 2 vitórias num total de 17 campeonatos, ficando o Benfica com 4, o Sporting com 9 e o F.C.Porto também com 2 (se não considerarmos as 4 edições experimentais da I Liga, com 3 títulos do Benfica e 1 do Porto): um manifesto equilíbrio, embora com o Sporting, então, destacado. E quem pode dizer o que seria o futuro do Benfica que, desde 44-45, só tinha sido campeão em 49-50, indo os restantes campeonatos para o Sporting e o Belenenses?
Tudo indica, pois, que hoje teríamos um Belenenses com mais força, com mais sócios e simpatizantes (porque, queiramos ou não, mesmo num clube como o Belenenses, são as vitórias que trazem mais adeptos....), com mais títulos no seu palmarés. Em contrapartida, não teríamos nos nossos anais esse episódio tão único, simultaneamente tão triste e tão belo, que afinal também faz parte da caracterização do Belenenses; nem teríamos talvez este tão entranhado este sentimento de amor feito de resistência, porque muito da nossa história é um combate pela sobrevivência, contra as adversidades de todo o género. Como escreveu um dia, num belo editorial, Alexandre Pais, ao tempo director do Jornal do Belenenses: “O evitar do cataclismo tem sido o milagre permanente deste clube nobre e atormentado, tantas vezes infeliz”…
Certo, certo é que foi a grande hipótese que uma plêiade de jogadores míticos do Belenenses perderam de ser campeões: Matateu, Vicente, Di Pace, José Pereira, o azulíssimo Carlos Silva, Raul Figueiredo, etc, etc. E outra coisa é certa: esse foi, por excelência, o dia em que Belém chorou e o seu coração estalou de sofrimento... Mas não desistimos, não desistiremos. Como diz o amigo Luís Lacerda: “Hei-de ver o Belenenses outra vez campeão, nem que eu tenha que não morrer! (“Os teus olhos, Belém, / Já viram tanta coisa, e porém...”. É o começo de um poema que algum dia escrevi mas que, entretanto, perdi e cuja sequência já não recordo).
Escrevo este texto antes do Portugal – Espanha. Sem que isso signifique nenhuma antipatia para com os espanhóis, espero que o desfecho não seja identicamente triste para os portugueses. E espero ardentemente que algum dia, nem que seja só um, possa ver Belém – Belém em todos os lugares onde palpita um coração azul - assim engalanada, para uma festa que vá até ao fim!
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