quarta-feira, setembro 22, 2004

A DÉCADA DE 70 - PARTE I – A MINHA PRIMEIRA VEZ


Durante muitos anos, o meu pai trabalhava aos fins-de-semana, os jogos eram quase sempre ao Domingo (contavam-se pelos dedos de uma mão os jogos, incluindo todas as equipas, que não o eram, durante uma época inteira), não morávamos perto de Belém, e, por isso, a primeira vez que fui ao futebol com plena consciência foi no fim de Setembro ou princípio de Outubro de 1970. Tinha então 9 anos. Lembro-me muito vagamente de ter ido alguns anos antes ir ver um jogo com a Académica…mas era muito pequenino, e só me recordo de que um jogador da Académica fez um auto-golo, o que me causou muita confusão: “então se foi um da Académica que ‘meteu’ a bola na baliza, como é que é golo do Belenenses”?

De modo que, a minha verdadeira primeira vez a ver um jogo do Belenenses, foi à 4ª jornada da época 70/71, num sábado à noite, em desafio com o Tirsense.

Estávamos no início da década de 70 mas permitam-me fazer um rápido resumo da década de 60, da qual as minhas memórias pessoais são esbatidíssimas, pelo que me vou cingir a factos e números objectivos.

Foi uma época dominada pelo grave problema com o Estádio, com todas as consequências daí advenientes (e a que já me referi em outros artigos). Face ao dramático problema económico e financeiro, a competitividade do Belenenses decaiu, e começou a haver uma décalage face o Benfica e o Sporting (e, embora menos, para o F.C. Porto, que também não viveu grandes dias. Por exemplo, na época de 69/70, ficou em 9º lugar, duas posições atrás do Belém). Esta nossa crise de resultados veio numa péssima altura, com o boom das competições europeias, da televisão, dos meios de comunicação… Já falámos disso noutros contextos.

Mas não se pense que o Belenenses perdera o seu peso específico. Era um clube “respeitado de chapéu na mão”. Toda a gente falava, SEMPRE, nos 4 grandes. Em qualquer coisa em que houvesse símbolos clubísticos, um deles era o Belenenses. Sempre! Podíamos ter feito um péssimo campeonato numa época que, no início da seguinte, o Belenenses não deixava se ser referido como um dos candidatos ao título. E tínhamos dirigentes que sabiam e faziam questão de manter essa imagem de prestígio do clube.

Repare-se que os anos 60, em termos desportivos até começaram da melhor maneira. Em 1960, ganhámos a Taça de Portugal, batendo o Sporting, na final, por 2-1. No campeonato de 59/60, ficámos em 3º lugar, infringindo a única derrota ao campeão Benfica, em pleno Estádio da Luz, na última jornada (já agora, recordo que na época anterior, a de 58/59, lutámos até ao fim pelo título com o Benfica e o Porto, apenas 3 pontos de diferença nos separando…apesar do célebre caso do golo de canto directo que nos daria a vitória contra o Benfica e foi estupidamente anulado, em jogo no Restelo, QUE ESGOTOU. Disso haveremos em breve de falar nas “Palavras Que Foram Ditas”. Ainda em 1960, vencemos a então prestigiosa Taça de Honra da AFL, vencendo o Benfica na Final por uma goleada: 5-0. Vale a pena frisar que no mencionado campeonato de 59/60, contra os nossos 3 rivais de então, em casa, empatámos 0-0 com o Benfica e ganhámos 1-0 tanto ao Porto como ao Sporting; fora, ganhámos 2-1 ao Benfica e 3-2 ao F.C.Porto. Já agora, ganhámos ao Boavista por 8-0 no Restelo e por 1-0 no jogo “fora”…

Mesmo nas épocas seguintes, a prestação da equipa, não tendo sido boa (face ao nosso historial de então), manteve-se dentro de padrões de competitividade.

Por exemplo, na Taça de Portugal, estivemos 5 vezes seguidas nas meias final. Na edição de 60/61, perdemos com o Leixões (que veio a derrotar o F.C.Porto, na final no Estádio das Antas): em Matosinhos, por 3-2; e no Restelo, por 1-2; pelo caminho deixáramos, por exemplo, o Beira-Mar, com vitórias por 4-1 em Aveiro e 7-0 no Restelo.

Em 61/62, fomos afastados pelo Vitória de Setúbal, com quem perdemos por 1-0 no Bonfim e empatámos a zero no Restelo. Nos quartos de final, havíamos eliminado o Sporting (nesse ano campeão nacional), após um despique espectacular: e emocionante: ganhámos 4-3 no Restelo; perdemos 3-2 em Alvalade e vencemos por 2-1 no desempate. Grande Belenenses! Como éramos fortes então!

Em 62/63, novamente nas meias-finais, perdemos 3-1 em Guimarães; neutralizámos a desvantagem na 2º mão, vencendo por 2-0 no Restelo; mas voltámos a perder 3-1 no desempate. Antes, nos quartos de final, afastáramos o F.C.Porto, vencendo por 3-0 no Restelo e perdendo por 1-0 nas Antas.

Em 63/64, pela 5ª vez consecutiva nas meias-finais, baqueámos ante o Benfica por 3-0 e 3-1. Nos quartos de final ganháramos ao V.Setúbal por 2-0 no Restelo e por 2-1 no Bonfim.

Mesmo em 64/65, embora sendo afastados nos quartos de final, tal só aconteceu após novo despique cerrado com o Sporting, bem demonstrativo da rivalidade de então: 0-0 em Alvalade; 1-1 no Restelo; 1-3 no desempate.

Voltemos ao Campeonato Nacional. Em 60/61 e em 61/62, ficámos em 5º lugar (sendo Yauca, com 21 golos, o 2º melhor marcador, com 21 golos, menos 2 que Azumir, avançado portista); em 62/63, conquistámos um 4º lugar, “colados” ao Sporting; em 63/64, ficámos em 6º, mas com os mesmos pontos do 5º e apenas a 4 pontos do Sporting, 3º classificado.

Gostava ainda de lembrar que, em 1961, nos estreámos na antecessora da Taça Uefa, ou seja, a Taça das Cidades com Feira, em que marcámos presença até à época de 64/65. As nossas participações foram um resumo do que viria a ser muito do percurso vindouro do Belenenses: um misto de infelicidade e de falhanços… quando menos se espera.

Assim, na 1ª participação, empatámos 3-3 na Escócia, frente ao Hibernian (que, atenção, detêm 4 campeonatos da Escócia!). Foi em 6 de Setembro de 1961. Tratou-se de um excelente resultado, com 1 golo de Yauca e 2 de Matateu, que realizou extraordinária exibição. Mas, 3 semanas depois, no Restelo, perdemos 3-1 (mais um golo de Matateu)… e fomos eliminados!

Na época de 62/63, a sorte foi-nos duplamente madrasta. Começou no sorteio, que nos ditou o Barcelona (o que se viria a repetir em 76/77 e 86/87; demos sempre muita réplica e fomos sempre muito desafortunados…). Empatámos 2-2 no Restelo e 1-1 em Barcelona. O jogo de desempate (como era uso na época) foi em Barcelona. E perdemos por 3-2…

Em 63/64, começámos por eliminar os jugoslavos do Tresnjevka: ganhámos por 2-0 em Zagreb e, na 2ª mão, no Restelo, vencemos novamente, agora por 2-1. Na eliminatória seguinte, novamente o sorteio nos foi aziago, ao pôr-nos no caminho a poderosa equipa do Roma. Na 1ª mão, em Itália, perdemos por um promissor 2-1, que nos deixava boas esperanças de recuperação no Restelo. Mas, na 2ª maão, em casa, as coisas não correram bem, e perdemos por 1-0.

Finalmente, em 64/65, 2saiu-nos” o Shelbourne, da Irlanda: empates no Restelo por 1-1 e na Irlanda por 0-0 e novamente o desempate em casa do nosso adversário, em Dublin – derrota por 2-1. E foi a despedida até 1973/74, como contaremos no próximo artigo.

A partir de então, i.e., do meio da década, de facto, os resultados deterioram-se. Assim, em 64/65, já nos quedámos num 8º lugar. Pior ainda foi em 66/67, com um 11º lugar, então a pior classificação de sempre (embora com larga distância sobre o 1º lugar de despromoção e, note-se, tendo ganho ao campeão Benfica por 2-1). Não obstante, o Belenenses continuava cheio de alma e uma prova disso foi a vitória por 4-0 sobre o Sporting, em 67/68, numa altura em que os 2 clubes estavam de relações cortadas por causa do célebre “caso Carlitos”. O Restelo ficou ao rubro, com uma grande assistência, e o Sporting começou aí a perder o campeonato desse ano!...

Voltemos agora ao ano do tal Belenenses-Tirsense. Nessa época, o treinador do Belenenses foi (ou começou por ser) Joaquim Meirim. Era um treinador que havia obtido grande sucesso na CUF e no Varzim, clubes que conduziu às melhores classificações de sempre (curiosamente, no ano anterior, no comando do Varzim, passou um mau bocado no Restelo, pois os adeptos azuis haviam ficado indignados com uma sua afirmação. Interrogado acerca da sua previsão do jogo, respondeu: “Jogo?! Não? Vai ser um simples treino!” O Belenenses ganhou por 1-0). J.Meirim tinha métodos muito peculiares de treino, e jogava muito com a psicologia de jogadores (próprios e adversários) e do público. Para o bem e para o mal… Era meio génio, meio louco, passe o exagero em ambos os sentidos, e sem nos querermos pronunciar mais, até por respeito a quem já morreu.

Ele chegou ao Belenenses prometendo que o ia voltar a fazer campeão (aliás, também já dissera que, se fosse seleccionador, Portugal seria campeão do mundo). Obviamente que, nas condições em que o plantel foi constituído, tal era completamente impossível. Foi buscar uma série de jogadores a clubes secundários (nota: num tempo em que nestes havia total amadorismo, e condições muitíssimo precárias, coisa bem diferente da actualidade), dos quais só um realmente se aproveitou (e, justiça seja feita, aproveitou muito bem): João Cardoso. Contratou-se, salvo erro à CUF, o Guarda-Redes Vítor Cabral, titular da então chamada Selecção de Esperanças, que eram os sub-23 (não obstante, Vítor Cabral foi suplente de Mourinho) e nada mais, que me lembre…

No entanto, o facto é que a euforia que rodeou o Belenenses no início de época foi verdadeiramente espectacular, e demonstrativa da força e popularidade de que o clube então dispunha. Não vi o 1º jogo, que ganhámos em casa, face ao Vitória de Guimarães, por 3-1. Mas lembro-me de ler na “Bola” que o estádio estava praticamente cheio (repito: praticamente cheio) de adeptos do Belenenses e que, quando chegámos aos 3-0 (depois o VG reduziu), o público pedia mais um golo para o Belém “ficar, JÁ, em 1º lugar” (sic)… que é como quem diz: no fim vamos ser campeões mas queremos liderar logo a partir da 1ª jornada!...

Seguiram-se derrotas fora com o Porto e o Farense, ambas por 1-0. Mas o entusiasmo à volta do Belenenses mantinha-se. Recuperara-se a posse do estádio! As celebrações dos 50 anos haviam sido em grande! Sonhava-se novamente com o título de campeão… Era uma autêntica euforia azul!

Permita-se-nos ilustrar algo disto com palavras de Meirim. Entrevistado por Santos Costa, no Record de 5 de Setembro de 1993, dizia ele:

“O Belenenses estava a passar desportiva e economicamente por um momento terrível. Fui contratado e o clube catapultou-se como o primeiro clube nacional nesse ano, resolveu todos os seus problemas económicos, os cofres vazios passaram a estar a abarrotar de dinheiro [exagero, claro!], resolveu todos os seus problemas menos o do treinador, que se expôs demasiadamente na defesa de um projecto, na defesa de um clube que não deu a devida projecção e rectaguarda de apoio ao seu técnico (…)

Joguei tudo no Belenenses (a voz tremeu-lhe um pouco) e não me deu a rectaguarda com a eficiência de que eu precisava (…) O Belenenses é um clube muito especial, tem a simpatia de quase todos os adeptos, como primeiro ou segundo clube, é um campo de trabalho difícil para muitos grandes treinadores internacionais, como Fernando Riera, Helénio Herrera, Otto Glória e muitos mais. O importante é que, para o Belenenses, foi uma época extraordinária de vitalidade, porque ressurgiu do ocaso e só resistia pela força de Acácio Rosa, Gouveia da Veiga e outros (…)

- Qual foi a sua ideia ao voltar a jogar com os equipamentos originais do Belenenses?

- Às vezes é preciso mudar tudo, é necessário ser radical. O Belenenses, para manter a sua identidade nacional como clube, tinha de regressar às suas origens e foi aquilo que eu fiz. O reencontro com os associados deu-se rapidamente. Fomos às Antas e este estádio encheu-se com milhares e milhares de adeptos do Belenenses. Era uma loucura nacional a presença do Belenenses e isso nunca mais se conseguiu em Belém”.

Apesar das derrotas contra o Farense, o Belenenses nesse jogo com o Tirsense estava ainda em estado de graça. Era um Sábado à noite, repito, mas o estádio estava quase cheio. Cerca de 30.000 pessoas! Repito: cerca de 30.000 pessoas, contra o Tirsense, num sábado à noite…

Tal era a vitalidade do clube – que era um clube grande e um grande clube – que, no Intervalo, desfilavam centena de pessoas à volta do terreno de jogo, ou seja, na pista, com bandeiras e pendões do Belenenses, bem como cartazes, entre os quais me recordo de uma frase: “Meirim, o mago que mudou o futebol do Belenenses”! (o culto da personalidade dá sempre mau resultado…).

Do jogo em si, pouco me lembro. Saldou-se por um empate 0-0. Sei que, já na 2ª parte, nos foi anulado um golo – não faço ideia se bem ou mal e muito menos porquê. Lembro-me que foi um remate de cabeça, que toda a gente se levantou, e eu não, e que o meu pai quase me pegou ao colo…Depois os protestos… e é tudo…

Tenho sim, bem viva, a sensação de uma noite encantada…ir ver ao Estádio o meu querido Belenenses! A caminho do estádio, no carro, ali nas ruas entre a Ajuda e ao Restelo, eu tremia de emoção – isso também me recordo.

Igualmente me lembro – já o contei, mas a vale a pena repetir – da entrada das equipas em campo. A última a entrar, foi a do Belenenses, debaixo de ma ovação estrondosa! Mas antes, quando o Tirsense surgiu em campo, surpreendi-me de ver o meu pai, como outros belenenses, o aplaudirem, embora de forma diferente daquele incentivo tributado à nossa equipa. Habituado a ver na televisão as equipas forasteiras a ser assobiadas quando entravam em campo, inquiri o meu pai. E ele deu-me a resposta, que nunca esqueci nem esquecerei, e que, para mim, é não só uma lição de belenensismo mas também de desportivismo e, mais que tudo, de humanismo e respeito: “aplaudimos, para agradecermos [o facto de] eles virem jogar connosco. Já viste, se não, jogávamos sozinhos… Eles são adversários, não são inimigos. O futebol não é uma guerra…”. Por isso, permitam-me dizer: GUARDEMOS AS FORÇAS PARA APOIAR A NOSSA EQUIPA, EM VEZ DE A DESPERDIÇARMOS COM INSULTOS QUE SÓ FICAM MAL A QUEM OS PROFERE.

A partir de certa altura, nessa tal época de 70/71, o Belenenses começou a cair na classificação e Meirim saiu, com a despromoção a ameaçar. O treinador foi então…Homero Serpa (o grande belenenses Homero Serpa! 1000%!) coadjuvado pelo Guarda-Redes Mourinho – sim, o pai do actual treinador do Chelsea. Só perto do fim se desvaneceu o pesadelo da despromoção (lembro-me que, na altura, um grupo de sócios ofereceu… um pente a Mourinho, dado este usar o cabelo comprido, facto muito raro na época. Podemos oferecer um ao Neca, se ele este ano marcar 10 golos!...). Foi o primeiro grande susto, embora tenhamos acabado em 7º lugar, com os mesmos pontos do 6º, o Boavista, que pela primeira vez se classificou à nossa frente.

Sobre esta época, gostaria apenas de fazer um comentário: foi pena que ao entusiasmo se não tivesse somado a competência. Espero que, no futuro, com o espírito das épocas gloriosas do futuro, mass obviamente com os métodos adaptados ao nosso tempo, se unam rigor e paixão – e sejamos, enfim, e de facto, NOVAMENTE CAMPEÕES!

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