terça-feira, setembro 19, 2006
Mexendo no Lixo
Artigo de José Diogo Quintela, publicado no Gato Fedorento:
MEXENDO NO LIXO: Este é longo, desculpem lá.
No Sábado, em Alvalade, houve um golo marcado com a mão. Apesar de o árbitro o validar, apesar de Ronny, o marcador, negar tê-lo marcado com a mão, a verdade é que o golo é irregular. É uma boa analogia para o que se passa nos bastidores do futebol português. Os tribunais consideram as escutas inválidas, a lei pode ser inconstitucional, os intervenientes podem dizer que é uma “situação normal”. Mas a verdade é que as conversas tiveram lugar e que são criminosas.
Apesar disto se passar no futebol, não é nos jornais desportivos que lemos sobre estas coisas, é noutras publicações. Por isso, num inquérito para o jornal Record, quando me perguntaram “o que gostaria de ler amanhã no Record?”, eu respondi “uma notícia qualquer sobre escutas e corrupção, que não seja primeiro dada nos jornais generalistas.”
Passados alguns dias, o director do Record, Alexandre Pais, escreveu isto:
“José Diogo Quintela disse, nestas colunas, que gostaria de ler amanhã no Record "uma notícia qualquer sobre escutas e corrupção que não seja primeiro dada nos jornais generalistas". Trata-se de um desejo difícil de concretizar, pois quando o futebol perder de todo a credibilidade - traído por aqueles a quem dá de comer - aos generalistas não faltarão outros temas para exibir barba rija. Mas, morto o futebol, o Record perderá a razão de existir. Que mexam no lixo que os tribunais largaram. Nós pertencemos a um circo que vive de emoções - de golos e de erros, títulos e de frustrações. E não temos vergonha disso.”
Confesso-me espantado. Por duas razões: primeiro, por dar mais importância a esta resposta do que à que eu dou à pergunta “Morangos com Açúcar ou Floribella”, de superior interesse. Segundo, pela assunção sincera da conivência da imprensa desportiva com as burlas do futebol português.
Continua...
Há conversas (que ninguém desmentiu) em que se fala de comprar árbitros para influenciar resultados. De jogos de futebol. Que é um desporto. Coberto pelos jornais desportivos. Não totalmente, digo eu.
E Alexandre Pais vem dizer, com desfaçatez, que não vai mexer no “lixo que os tribunais largaram”. Acho que não sabe que, ao não querer falar nisso, Alexandre Pais e os outros jornais desportivos estão, no mínimo, a forrar o caixote onde está esse lixo. É que os tribunais podem ter largado o lixo, mas não foram os tribunais que o fizeram. Foram aqueles que, pelos vistos, “dão de comer” aos jornais desportivos. Curiosa expressão. Julgava que quem dava de comer eram quem pagava, i.e. os leitores.
Pelos vistos, quem dá de comer são os dirigentes a quem os jornalistas prestam vassalagem. Aliás, exagero. Não são os jornalistas. Quem, conscientemente, sonega informação aos leitores, não é um jornalista. É, porventura, um divulgador da actividade desportiva. Faz agendas e dá resultados, vá lá. E a “morte do futebol”, em vez de ser evitada por este silêncio, é ajudada.
Gosto especialmente quando Alexandre Pais diz “. Nós pertencemos a um circo que vive de emoções – de golos e de erros, títulos e de frustrações.” Para já, porque é uma afirmação peca por defeito. É preciso acrescentar que há emoções que são falsas, porque há golos roubados, erros combinados, títulos pagos e frustrações que não têm que ver com o que se passa no campo, mas sim com o que se passa num restaurante qualquer de beira de estrada, onde a um fiscal de linha é prometida uma meretriz e um telemóvel com 3G, novinho em folha.
Depois, gosto da frase porque parece estar a insinuar que quem silencia, fá-lo porque gosta de futebol. Como se nós, os tagarelas e curiosos, não gostássemos. Não só isso, estamos a contribuir para a falada “morte do futebol”. E, como tal, para o fim da razão do Record existir. Mas, tão facilmente como Alexandre Pais diz isto, eu inverto o argumento: quem não gosta de futebol e contribui para a sua morte é quem silencia, e, se é para prestar esse serviço, se calhar não faz sentido o Record existir. Quem diz Record, diz qualquer um dos outros dois diários desportivos que teimam em fingir que nada passa.
Alexandre Pais finaliza com “e não temos vergonha disso”. É de louvar a admissão, mas é redundante. Já se tinha percebido que não têm vergonha. Mas não são os únicos.
Ps – para mais informação, leiam este texto da Leonor Pinhão, n’A Bola. A parte mais sumarenta é esta:
"Há 20 anos, ou talvez mais, dois jogos decisivos da derradeira jornada de uma série qualquer dos campeonatos distritais de futebol terminaram com resultados impensáveis. Qualquer coisa como 18-6, um, e 21-7, o outro.
Na altura eu era jornalista de A BOLA. Todos os domingos recebia as chamadas telefónicas dos correspondentes locais e tomava nota dos jogos e das classificações. O despropósito dos números dos golos daqueles dois jogos motivou-me a querer saber porquê e como e quem.
A curiosidade profissional foi rapidamente satisfeita. Os dois clubes supergoleadores de terras vizinhas disputavam entre si a subida de escalão e estavam igualados em pontos a uma jornada do fim. A temporada iria resolver-se pela diferença de golos. E até nesse pormenor as duas equipas rivais tinham um score idêntico.
E todos tiveram a mesma ideia. Os guarda-redes das equipas adversárias foram amaciados, os árbitros foram sensibilizados, alguns jogadores das equipas pretendentes à subida rubricaram exibições não menos estranhas e marcaram golos na própria baliza. Os dois resultados avolumaram-se até ao ponto da demência. E porquê? Porque cada equipa tinha um espião no campo do adversário. A missão do espião era correr para o telefone do café mais próximo sempre que houvesse um golo e informar os da sua cor da marcha do marcador.
Nunca dois espiões correram tanto e telefonaram tanto. E, assim, dentro das quatro linhas os jogadores iam sabendo como paravam as modas e os golos que tinham de deixar entrar, uns, e que tinham de marcar, outros.
A história tinha pinceladas neo-realistas. Cheguei a falar com algumas testemunhas dos acontecimentos e houve uma (torcia pelo clube que acabou por ficar em segundo lugar e não subir) que me garantiu ter a GNR ajudado o clube adversário ao disponibilizar ao espião os meios sofisticados de comunicação telefónica da sua carrinha destacada para manter a segurança pública do espectáculo.
Recolhida esta primeira dose de informação dirigi-me ao mítico chefe de redacção de A BOLA, Vítor Santos, e, contando o que já sabia, pedi autorização para me deslocar até às duas localidades em questão para fazer uma reportagem.
— Para fazer o quê? — perguntou o meu chefe.
— Uma reportagem. Falar com os dirigentes, com os jogadores, com os espectadores…
— Pois, pois…
— Ia eu e um fotógrafo. É uma grande história, chefe! — insisti num entusiasmo pueril.
Mas não tive sorte nenhuma.
— Sabes, rapariga, eu acho melhor não tocar nisso — disse-me o Vítor Santos. Olhou-me nos olhos, inclinou-se para trás na sua cadeira de chefe e cruzou as mãos em cima da barriga.
— Não tocar nisso? — Nem ao de leve. Essas coisas existem, sempre hão-de existir mas torná-las públicas faz mal ao futebol e nós, jornalistas, não podemos fazer mal ao futebol." ZDQ
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