Continuamos, nesta II Parte, a relembrar e a comentar peças escritas sobre a paixão, o entusiasmo e o fervor clubístico que acompanhavam Belenenses, em contraste com a frieza e a passividade dos últimos anos. Fazêmo-lo com o sentido de mostrar que é possível e necessário inverter a situação.
Servimo-nos, mais uma vez, do jornal “A Bola”, do qual extraímos várias passagens dedicadas à inauguração do Estádio do Restelo, e a tudo quanto a rodeou. Deve salientar-se que, a força e popularidade que o nosso clube detinha então, fizeram com que durante uma semana as primeiras páginas fossem quase exclusivamente (num caso, mesmo totalmente) dedicadas ao Belenenses.
Na edição de 24 de Setembro de 1956 (nº1535), assim escrevia Vítor Santos, nas páginas 1 e 4:
“E ficou tudo azul! (...)
Ele ali estava, o azul portentoso na bandeirinha amorosamente colocada na varanda florida e nas trapeira velhinha, alcandorada no beiral escuro, carregado de tempo. Ele ali estava, o azul teimoso, no quadrinho ingénuo, de figuras recortadas à tesoura e coladas pela família (...). Ele ali estava, o azul ‘terrível’, na bandeira a esvoaçar, na colcha brilhante (tirada da arca e de alecrim perfumada), no galhardete, no mastro, no gradeamento, no letreiro, na saudação, em tudo o que Belém trouxe para a rua no dia festa da grande do Belenenses, menina dos olhos daquela gente briosa, honrada e digna (...)
Tudo azul! (...)
O Belenenses, na data festiva da inauguração do seu maravilhoso Estádio do Restelo, esgotou o azul. Ficou todo ali, em centenas de trajos e lenços e colchas e gravatas de cor azul, azul vivo, azul vivo e mais ‘terrível’ que nunca, a meter-se pelos olhos da gente. Foi uma inundação lenta, progressiva, paciente mas esmagadora. A cor rainha, dominadora, ditatorial, entrava pelos olhos, inundava as almas, enciumava os estranhos, apaixonava os da família.
E que grande família aquela que pôs, logo de manhã, todo Belém em festa, indiferente à chuva, gozando-a mesmo, como bofetada de quem quer saber se gostam mesmo dele, a sério, a valer, verdade, verdadinha...
Depois o dia escorreu, num ápice, que um dia de festa leva metade do tempo a passar. E quando chegou a hora da festa, da verdadeira festa, a cor obsidiante conquistara tudo (...)
Todo o azul alfacinha estava ali, em mil camisolas berrantes, sangradas com a Cruz de Cristo, como se cada uma delas tivesse precisado de mostrar, no sangue vermelho e capitoso dos peitos que as cingiam, a sinceridade da sua fé e da sua mística.
(...)
Foi lindo! Já sentiramos a alegria e a emoção daquela gente quando percorremos becos e travessas empedradas de colchas e bandeiras ao vento, grinaldas rendilhadas, flores mais vivas da água da chuva teimosa e desmancha-prazeres.
Mas quando, às 15.30, um morteiro estoirou nos ares, anunciando a chegada do Presidente da República, e o dique da emoção se despedaçou, fazendo soltar dos peitos gritos reprimidos, alegrias incontíveis, ternuras conservada a tanto custo, no mais íntimo de cada um, é que se viu bem o que representava “aquilo” para a gente do Belenenses.
Não era o Estádio em si, aquela maravilhosa jóia arquitectónica debruçada sobre o Tejo; não era a grandeza daquele ‘monumento’ de cimento e de pedra, lindo nas suas linhas harmoniosas e suaves, de bela concepção helénica; não era o enriquecimento material do património do clube que, nascido há 37 anos no areal da ‘praia’, ali estava agora, estuante de vida e de querer. Era, sim, a mística da colectividade que se sentia pairar por sobre as cabeças, ciciando a epopeia de uma família – todo um passado de alegrias e tristezas, felicidades e infortúnios, risos e choros.
E não houve olhos de gente ‘azul’ onde não aflorasse uma lágrima salgada de emoção e ternura. Vimo-las borbulhar, como fio de água na nascente, na face carcomida de certo velho, cabeça branca da neve do tempo, pele morena tisnada de mil sóis; vimo-las, gotas de cristal, na carita de uma criança loura e branca; vimo-las a escorrer pela cara de homens fortes, curtidos nas andanças da vida, mas ali feitos miúdos, sensíveis, ternos, mesmo tímidos e meigos, como meninos de escola
(...) Atroaram os ares o rufar dos tambores e a estridência das cornetas. Batiam-se palmas, gritavam-se vivas, explodiam saudações e incitamentos (...)”.
E terminando, falando da sua saída do Estádio, descendo por Belém e seguindo até à Praça Afonso de Albuquerque (onde nasceu o Belenenses), concluiu Vítor Santos:
“De uma varanda engalanada, dois bocados de trapo branco e letras azuis diziam-nos adeus. Lemos as palavras ali pintadas por mãos pobres, sinceras e dignas. Diziam isto:
- Glória aos obreiros do Estádio! Belém! Belém! Belém!
Parecia que nos tinham gritado aos ouvidos aquelas palavras. E, a caminho da Baixa, o motor do carro, as árvores, as casas de Lisboa, o céu, o Tejo, tudo nos gritava:
Belém! Belém! Belém!”
Não podemos deixar de pensar que ainda há dias se tentou fazer uma concentração para alegrar as Ruas de Belém perto do Estádio antes do jogo com o Boavista e, por causa da chuva (é certo, também da tardia divulgação da ideia), compareceram 5 pessoas... Para onde foi a Paixão?
Não podemos deixar de pensar no silêncio e na impassibilidade (nem umas leves palmas...) de grande parte da bancadas dos sócios ‘”cativos”, no mesmo jogo... Para onde foi a Paixão?
Na página 4 do mesmo jornal, num espaço dedicado a entrevistas, podemos ler: “Jornada de vibração e de euforia. De exaltação clubística (...) Jornada que fez transbordar de alegria os corações de todos os belenenses e que os fez vibrar de emoção.
Por isso, vimos lágrimas em muitos olhos. Ouvimos as vozes que se embargavam nas gargantas, mas quedando-se ali aprisionadas numa emoção incontida.
Como aconteceu, por exemplo, com Francisco Mega, um dos nomes mais ligados à vida do Belenenses.(...) ouvimos-lhe a voz. Trémula. A custo, conseguiu dizer:
- Estou radiante...É um dos momentos mais felizes da minha vida...
Levantámos então os olhos para ele e vimo-lo chorar. (...) Um abraço daquele homem que uma alegria grande vencia, selou a entrevista.
Francisco Mega dissera mais do que poderiam tê-lo feito mil palavras”.
Porque há quem pense que “os homens não choram” ou que, se o fazem, é porque a emoção lhes tira o discernimento, a competência e a determinação, cabe lembrar que Francisco Mega foi vária vezes Presidente do Belenenses (1935-38; 1939-41; 1950-54); que nem por então ser outro o Presidente, deixava de sentir o clube e a obra como seus; que era um desses homens que fizeram grande o Belenenses, em tempos em que todos os anos se acrescentava algo ao clube, em progressão constante, desses homens que nunca se dobraram perante os rivais, que, no seu orgulho, jamais aceitariam (quanto menos promover, sem necessidade...) situações que nos rebaixam perante esses clubes (não vou repetir...), dirigentes com uma capacidade de realização extraordinária...
Voltemos ao jornal “A Bola”. Na página 5 da mesma edição, de um artigo com o título “Das Salésias ao Restelo”, reproduzimos os seguintes excertos:
“As cerimónias de inauguração do Estádio do Restelo principiaram logo de manhã, como estava anunciado. E nem a chuva que caiu até cerca do meio dia ofuscou o brilho duma jornada que ficará assinalada na história do Belenenses como uma jornada inesquecível para a grande ‘família azul’; nem serviu para afastar a enorme falange de adeptos do clube que, desde as primeiras horas, começou a encher as ruas dos bairros de Belém, Junqueira e imediações, para não perder um só dos actos que serviram para festejar o grande acontecimento.
O ciclo das solenidades principiou com o último acto oficial nas Salésias: a homenagem que se prestou a José Manuel Soares (...)
Procedeu, depois, ao arrear da bandeira, o presidente da Direcção [Major Pascoal Rodrigues] do Belenenses (...) e fez dela entrega ao atleta olímpico Rui Ramos, entre calorosos aplausos da enorme assistência que nas Salésias presenciou o acto.
Organizou-se em seguida um extenso cortejo, seguindo à frente aquele atleta a transportar a bandeira numa salva de prata, acompanhado pelos membros da secção de cicloturismo do Belenenses e representantes das secções de andebol, atletismo, voleibol, hóquei, futebol, ténis de mesa, badminton, campismo, natação, ginástica e basquetebol.
O cortejo seguiu pela Rua das Casas do Trabalho, Rua da Junqueira, Rua Direita de Belém, Travessa das Linheiras, Rua Vieira Portuense (onde fez uma pequena paragem em frente da primeira sede do clube) e continuou pela Travessa da Praça, Largo de Belém, Rua dos Jerónimos e Avenida do Restelo, até parar junto do novo estádio.
Na última parte do percurso, a multidão engrossou, vitoriando os componentes do cortejo.
A cerimónia que se seguiu, o hastear da bandeira pelo Dr. Santos Pinto [na altura Presidente da AG], no mastro de honra, deu lugar a grandes manifestações de entusiasmo, ouvindo-se, com insistência, o buzinar dos automóveis que pejavam as artérias que circundam o estádio”.
Era gente que não chegava em cima da hora, ou até já depois, nos grandes dias... porque não queria perder nada do sentimento arreigado que escorria de cada acto belenenses...
As páginas 5 e 7 dão conta da grande parada que houve na pista ao redor do Estádio, onde “200 clubes com cerca de 3.500 atletas prestaram a sua homenagem ao Belenenses”. Números reveladores... O Belenenses de então, digno e altaneiro, que nunca calava a sua voz quando era injustiçado ou o tentavam subalternizar, nem por isso (ou talvez por isso mesmo...) deixava de merecer um extraordinário respeito. Saliente-se que houve desfiles mais ou menos semelhantes na inauguração das Antas, da Luz e de Alvalade, mas nenhum atingiu os números do Belenenses (já agora, o Belenenses foi o clube com mais atletas representados em Alvalade, com excepção, como é óbvio, do clube da casa)! Entre esses 3.500 atletas, 650 eram do Belenenses!
Depois da descrição pormenorizada do desfile, podemos ler a dado passo:
“E para terminar, sob verdadeira tempestade de aplausos, começaram a desfilar os atletas do Belenenses. (...)
Foi um dos grandes momentos da festa, que serviu para que o Belenenses pudesse mostrar a falange de atletas de que dispõe para cumprir a sua alta missão de clube desportivo.
Lentamente, todas as secções desfilaram perante o público e a todas foi dispensado o mesmo carinho e o mesmo entusiasmo”
Não é bem melhor “uma tempestade de aplausos” que uma tempestade de impropérios ou uma “tempestade” de indiferença e pose sobranceira e distante?
Algumas notas a título de comentário final:
1. noutro artigo, exporemos o programa completo de festividades relacionadas com a inauguração do Restelo. Um programa extraordinário a todos os títulos, mesmo visto à distância de quase 50 anos.
2- Há uma frase feita quando se fala do Belenenses, que é “os velhos do Restelo”. Como estou na meia idade, e comparando tempos de outrora com os de hoje, estou em posição de perguntar: não será que alguns de nós, mais jovens, nascemos ou já somos ainda mais velhos?! O nosso conformismo mortiço, faz crer que sim, algumas vezes...
3. Queremos ou não que um entusiasmo semelhante ao exposto nos artigos volte a rodear o nosso Belenenses? Queremos ou não – mesmo que tenhamos que apanhar um pouco de chuva? O que estamos dispostos a fazer, na prática?
4 - Não é verdade que a alma de um clube são os seus adeptos, e a vitalidade destes é que determina o que o clube pode ser?
5 - Por que é que não se fomenta este clima de entusiasmo? Porque é que não o fomentamos nós, porque é que a direcção o não fomenta, porque é que não lhe aderimos?
6 - Duma coisa, não pode restar dúvidas. O Belenenses foi e ainda é um CLUBE ENORME mas está adormecido: ACORDA, BELÉM, QUE SE FAZ TARDE!
terça-feira, novembro 16, 2004
PALAVRAS QUE FORAM DITAS - 29 - ...E a Paixão, para onde foi? (Parte II)
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