(Artigo da autoria de Manuel Benavente)
Todos já nos habituáramos à presença do Jacinto Ramos, fosse no Estádio, no Pavilhão, em Assembleias mais ou menos concorridas, em que do cimo dos seus muitos anos, levava sempre com uma bonomia evidente, os fora de jogo, os empurrões e as rasteiras da vida.
Desculpem se neste clarim belenense não vos vou falar tanto e decerto do seu grande coração azul. Mas aceitem-me lembrá-lo no seu ofício teatreiro, em que os mais novos acreditem, era verdadeiramente fabuloso.
Foi actor, dirigiu actores, fundou e dirigiu grupos de teatro, foi autor de cinema, de argumentos para filmes, fez muito teatro em televisão e na rádio, era enfim aquilo a que se pode chamar um bicho de palco.
Protagonista em dezenas de peças, interveniente em dezenas de filmes, veio da amadora Sociedade Guilherme Cossul, tal como Varela Silva, Raul Solnado e outros grandes nomes do nosso teatro. E foi sem dúvida no teatro e no seu ofício de actor que criou com uma plasticidade soberba, os mais diversos e complicados personagens da vida.
Actor do chamado teatro sério – como se todo o teatro não fosse sério -, permitam-me que recorde o Jacinto Ramos não na prestigiosa sala do Teatro Nacional, da pequena e digna do Villaret ou da espampanante do Monumental, mas muito longe daqui, da nossa Lisboa, talvez mesmo no fim dos anos sessenta, na bela pérola do Índico que foi –e que decerto continua a ser - Lourenço Marques. È uma noite típica da África tropical na estação baixa, portanto nem particularmente húmida, nem excessivamente quente. A sala onde Jacinto Ramos vai actuar na Baixa laurentina e de que já não recordo o nome, ficava mais ou menos na diagonal ao Cinema Scala. É uma sala normalmente de cinema, já em declínio, não especialmente vocacionada naquela época para receber grandes peças, nem para espantosos actores. O ambiente não estará especialmente caloroso, excepto pela pitada de Portugal que a companhia de teatro nos traz. Ainda hoje vejo nos corredores de acesso o Luís Pinhão, também actor mas ali com funções apenas logísticas. Porém quando as luzes se apagam e surge Jacinto Ramos no palco construindo durante cerca de hora e meia o louco de Nicolau Gogol, tudo se transforma.
Deixa de haver sala excelente ou medíocre, poltronas confortáveis ou nem por isso, novos ricos e mulheres esplendorosas exibindo-se na estação baixa à falta de melhor.
Porque no palco vai estar um homem só, actor único da peça, agarrando e arrastando os espectadores à tragédia de Gogol. O personagem começa por ser um homem e acaba um verdadeiro farrapo.
O Jacinto Ramos teve uma interpretação portentosa, como tantas outras ao longo da sua vida.
E se aqui convoquei além de Jacinto Ramos, Lourenço Marques, anos sessenta, uma sala fraquinha, uma peça fenomenal e uma interpretação portentosa, trata-se apenas de me ver jovem de vinte e três anos, não muito amante de teatro e mais leitor de Gogol, confesso sem curar de saber se Jacinto Ramos era belenense como eu, porque nem isso era o mais importante. Mas a partir daí, isso sei bem, respeitei a arte de representar de outra forma, o que me proporcionou uma vivência de belas emoções, as quais tanto enriquecem a alma de cada um!
E se estas recordações servirem para outros mais jovens, irem ao teatro, gostarem de teatro, acreditarem no teatro, fiquem a saber que o Jacinto Ramos lá onde está e todos um dia haveremos de estar, dará por bem empregue o louco de Gogol que convocou naquela noite laurentina, pelo menos mais um português para o teatro.
Estou a vê-lo, numa noite da época passada, nas escadarias do Restelo, com os seus olhos risonhos e pequeninos e o ar gozão, dizendo-me sonhador: Não sabe o meu amigo o que me sucedeu na China …
Pois não meu caro Jacinto mas calculo…
Até sempre bom amigo e aquele belenense abraço!
sexta-feira, novembro 05, 2004
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