Se há coisa que nos pode entristecer no Restelo, mesmo no meio da alegria de uma vitória, é o progressivo esbatimento da paixão.
Não nos referimos, é claro, àquela indesejável paixão descontrolada e quase animal, destituída de equilíbrio e inteligência, que tantas vezes descamba, naturalmente, para a injustiça, o protesto impensado, o triunfalismo folclórico ou desrespeitoso. Falo, sim, da dedicação e do sacrifício, do entusiasmo galvanizador e contagiante, da vibração comovente com as venturas e desventuras do nosso Belenenses.
Fico, por isso mesmo, estupefacto, quando oiço falar do clube numa simples lógica de custos e ganhos, como se de uma empresa qualquer se tratasse – num clube, é necessário rigor financeiro mas não é isso que lhe justifica a existência. Fico, sinceramente, irritado com os braços cruzados e as gargantas caladas quando as equipas entram em campo e precisam do nosso apoio. Fico desiludido quando vejo as pessoas deliciarem-se com o fait-divers, e permanecerem insensíveis às histórias belas e dramáticas – de resistência e dedicação - do nosso clube, e ao pulsar da sua vida.
Não foi sempre assim. Já houve tempos, como aliás já referimos em outros artigos, em que o Belenenses se destacava, sim, pela paixão e entusiasmo das suas gentes... (cfr., v.g., “Palavras que Foram Ditas – 2”).
Há testemunhos inúmeros da vibração, do incentivo clamoroso que rodeava as nossas equipas. Em outros momentos, relatei aquilo a que eu próprio assisti; recorremos agora, e futuramente, a testemunhos alheios, e a tempos e acontecimentos a que não assistimos.
Tal é o caso destas páginas escritas por Vítor Santos (um grande jornalista, adepto do Sporting mas que sempre respeitou e manifestou autêntica simpatia pelo Belenenses), nas páginas do nº 1313 de “A Bola”, na sua edição de 25 de Abril de 1955. Exactamente: no dia a seguir ao célebre jogo com o Sporting, no último jogo do Campeonato, que perdemos a 4 minutos do fim, com bastante azar e lapsos (?) da arbitragem – conforme Carlos Gomes, Guarda-Redes leonino de então e figura mítica do futebol português veio a reconhecer... 49 anos depois. Mas disso voltaremos a falar noutra ocasião...
Assim, descrevendo aquele fatídico dia (para o Belenenses), escreveu Vitor Santos que, ao chegar às Salésias, às 14h30m, uma hora e meia antes do jogo começar...
“...o campo, sobretudo do lado do peão, estava já quase cheio. Pairava no ar um sussurro infernal, misto de alegria e expectativa. No rosto dos adeptos do Belenenses lia-se a confiança na vitória...
De todos os lados continuavam a afluir vagas sucessivas de gente, que vinha engrossar esse mar imenso de cabeças e bandeiras que emoldurava em grande gala o Estádio das Salésias.
(...)
15.57 – O Estádio tremeu e viveu numa prolongada onda de aplausos durante alguns segundos – talvez minutos – quando os rapazes da camisola azul subiram as escadas de acesso ao terreno.
No ar estrelejaram foguetes e rebentaram potentes morteiros, a anunciar a todo o bairro que ia começar a grande festa de Belém.
16.02 – Uma avançada, duas avançadas e, calmamente, Perez faz anichar a bola no fim das redes de Carlos Gomes.
Verdadeiro momento de loucura colectiva, assinalado ruidosamente com foguetes, morteiros, chocalhos e toda a espécie de instrumentos de fazer barulho!
Em todo o campo, os sócios e simpatizantes do clube, lágrimas nos olhos, abraçavam-se. No próprio camarote da Direcção, o contentamento era bem visível.
No campo, Perez, o autor do golo desaparecia no meio dos seus companheiros, tal era o desejo de todos em querer abraçar o ‘herói’ do momento. Alegria nas Salésias..”.
Gostava de fazer notar que o ‘velho’ Estádio das Salésias tinha então uma lotação de 26.000 pessoas. Não era um campozinho... Havia alguns adeptos do Sporting e alguns do Benfica (à espera do deslize do ‘Belém’, tal como muito adeptos azuis, talvez sem bilhete para as Salésias, se deslocaram à Luz, com o fito inverso...) mas, evidentemente, a grande, grande maioria era do Belenenses.
Perdemos o Campeonato, é certo; mas arrepio-me e comovo-me ao ler as descrições, sobretudo as que sublinhei. Quem me dera viver um momento desses, mesmo com um fim indesejado... Vibrar, sentir um clube vivo, momentos arrebatadores...
Compare-se aquela vibração com o desolador vazio e silêncio das bancadas do Restelo... e não se estranhará a pergunta:
“E a paixão, para onde foi?”.
Cabe a todos nós fazer com que esta pergunta deixe de ter sentido! É com esse objectivo que escrevo!
segunda-feira, novembro 15, 2004
PALAVRAS QUE FORAM DITAS - 28 - ...E a Paixão, para onde foi?
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