terça-feira, julho 27, 2004

Um pesadelo

(Artigo da autoria de Eduardo Torres)

Esta noite, tive um pesadelo.

Sonhei que o meu vizinho me tinha roubado o carro. Para não parecer que tinha sido ele, foi um amigo seu a levá-lo. Mas já estava combinado que, depois, o carro seria dado, por valor simbólico, a esse meu vizinho.

Deva-se dizer que (no pesadelo, claro), esse mesmo vizinho já me tinha pregado várias partidas. Além de me estar sempre a invadir o terreno e a tirar a clientela, ainda por cima, alguns dos seus filhos, quando me faz uma visita, deixam sempre estragos. Tudo isto no pesadelo, claro.

Apresentei queixa à polícia pelo roubo. Só que o meu vizinho é um dos que tem lá grandes conhecimentos e familiares. Ele diz que não, mas tem. Já os outros que igualmente têm grandes influências, costumam negar. E acusam-se mutuamente. Uma coisa é certa: eu é que não tenho! Nada, nadinha!

Bem, mas lá consegui levar o caso para tribunal. E ganhei a causa! Foi-me dada razão, o meu vizinho foi condenado a devolver-me o carro e a pagar uma indemnização, sob pena de ficar sem a carta.

Só que ele não pagava. Dizia, por exemplo, que não tinha dinheiro para pagar. Mas eu não percebo como é que isso era verdade, porque ele continuava e continua a comprar carros, carrinhos e carrões. Só para ter em frente da baliza, perdão, em frente da casa, tem três carros, dois dos quais recentemente comprados. Tudo isto no pesadelo, claro. Ora, acho eu, ele não pode dizer que não tem dinheiro, se continua a comprar carros. A comprar e a vender. Donde, concluí eu, além de ladrão, é um grande caloteiro.

Mas, depois, sabem que os sonhos e pesadelos têm sempre coisas estranhas. Reunimo-nos os dois para chegar a um acordo. E chegámos mesmo. Só que o acordo era um bocado estranho. No pesadelo, repito.

Ficou-lhe perdoada uma parte da indemnização. Já não sei bem quando é que ele paga, pagou ou pagará essa indemnização. Ainda bem que os pesadelos são assim, ou seja, depois não nos lembramos de tudo. Talvez ele até já tenha pago, quem sabe? Espero não estar a sonhar ao formular esta hipótese.

Mas há, aliás havia, no maldito pesadelo, uma outra coisa estranha: é que em vez de ele me dar o dinheiro para eu comprar um carro com ele, como era normal e determinado pela sentença judicial, o que ficou acordado foi uma coisa diferente. Disse-me dele: não, esse dinheiro, não lhe dou. Porque eu não tenho dinheiro (não se esqueça que eu tenho que comprar agora uma série de carros para contentar a família e dar que fazer aos jornalistas). Então, perguntei eu, e se me desse um carro de valor equivalente, ou seja, um bom carro – dar, é como quem diz, no fundo era devolver ou pagar a indemnização em género? Nã, nã, disse ele, nem pensar! Vamos fazer outra coisa: eu empresto-lhe um carro que precisa de rodagem, e um outro que não me dá garantias de segurança. E você anda com eles durante 8 meses. Depois devolve-mos, e ficamos quites! Nos sonhos e pesadelos, os pensamentos são coisas palpáveis. De modo que eu via-o a pensar: e assim não pago nada de especial, fico com a rodagem feita, sem estar a perder tempo e gasolina com isso, e gajo é tão troucha que vai aceitar.

Nesta altura, certamente estão a pensar que eu não podia ser suficientemente lorpa para aceitar. Sobretudo porque (já me esquecia de dizer isto), entramos ambos anualmente numa corrida. E, assim, ainda menos sentido faria eu aceitar condições tão iníquas. Mas não se esqueçam que aquilo era um pesadelo. E nos pesadelos podem suceder coisas incríveis e terríveis. E o facto é que eu aceitei!

Num estado normal nada disto teria sentido. Tanto mais que (também já me esquecia de falar nisso, e até nem tinha muita vontade de o fazer…), quando formos a correr lado a lado, eu não posso usar carro emprestado por ele. Até dá vontade de rir! Ai, ai, os enredos malucos que se arranjam nos pesadelos!

E tanto assim é, que eu, todo satisfeito, quando o carro por ele emprestado acelerava até aos 100, ficava louco de alegria, e esquecia tudo o resto. Nem pensava, por exemplo: e que carro é que eu vou ter na corrida do ano a seguir? Estranho ainda: uma parte da minha família ficou igualmente contente. Mas a esses, eu não levo a mal, porque são do meu sangue. Como disse alguém: “Right or wrong – my Country!”. Posso é não perdoar a mim próprio por ter sido tão lorpa. Mas nos pesadelos, acontece. E afinal, foi só um pesadelo…

Lembro-me também agora que, nos jornais lá do bairro, nunca ninguém sequer dizia que eu andava com o carro dele como pequena compensação do roubo que ele havia perpetrado. Não, eles até davam a entender que ele era um gajo tão porreiro, que me emprestava os carros dele. Isso nunca se esqueciam de dizer. E reparo agora: os mesmos jornais, que nunca tinham ligado ao meu carro, agora só queriam vir-me a casa fotografar os carros “emprestados” por ele. E passavam a vida a falar-lhes sobre o meu vizinho… Os pesadelos podem ser levados do diabo!

Havia ainda outras cláusulas do acordo. Não sei porquê, ele ficou com direito de preferência sobre qualquer carro que eu porventura venha a querer negociar. Não dá para perceber como é que, tendo sido ele o ladrão e caloteiro, eu ainda lhe dei esta benesse. Porque é que, pelo mesmo preço, eu tenho que vender um carro a ele, que compete na mesma corrida que eu e é mau pagador, quando posso vender para corredores de outras competições, e que devem ser melhores cumpridores das suas obrigações.?! Mas não se esqueçam que tudo isto é um pesadelo.

Também ficou acordado que eu farei uma visita a casa dele, pagando ele as despesas. Não ficou assente quando é que será. Espero que não seja em alguma noite fria, escura e chuvosa de Dezembro, depois da família dele ter gasto a massa toda numa grande jantarada, e depois só servem um pastelinho de bacalhau e meia imperial choca. Nos pesadelos tudo pode acontecer…

Ah, e ele também ficou de dizer quando é que passava por minha casa. Também é ele que paga o jantar. Parece que vai trazer um frango ou algum outro galináceo. Espero é que não traga os miúdos. Não me refiro aos miúdos do frango, atenção. Refiro-me, sim, às pestezinhas dos filhos deles. É que podem fazer tais estragos, que ainda fique mais caro que o jantar. É que eles têm bicos de águia. Ou de milhafres. É mais ou menos o mesmo. Seja como for, são aves de rapina. E nos pesadelos, nunca se sabe o que é que pode acontecer!

Felizmente, acordei e vi que era um pesadelo. Ainda estive um bocadinho naquele estado de dúvida mas depois vi que era mesmo um pesadelo: eu posso ser lorpa mas também há limites!

Só há uma coisa estranha. É que no fim do pesadelo, houve um facto misterioso. É que parecia que isto tinha uma relação qualquer com o meu clube. Mas não cheguei a perceber porquê. É que, recordem-se, eu acordei logo a seguir.

Por isso, pedi para publicar esta descrição aqui, para ver se alguém consegue descobrir alguma relação…

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