terça-feira, julho 13, 2004

O ESTÁDIO DO RESTELO – COMO O BELENENSES O MERECE

(Artigo da autoria de Eduardo Torres)

Nos últimos tempos, soube-se de um abaixo-assinado e de notícias na imprensa promovidos por uma Associação de Moradores das freguesias de Santa Maria de Belém e São Francisco Xavier, visando impedir a construção, junto do nosso estádio, de projectos imobiliários do clube em parceria com grupos empresariais.

Esgrime-se como argumentos os danos que pretensamente se infligirão na paisagem urbanística e na qualidade-de-vida-de-uma-das-poucas-zonas-de–Lisboa-com-qualidade. Utiliza-se o epíteto de “negociatas” para mencionar aqueles empreendimentos. E, qual cereja no cimo do bolo, diz-se sem mais nem menos, que o estádio foi oferecido pela Câmara ao Clube de Futebol “Os Belenenses” nos anos 90!!!

Atendendo a isto, é importante pôr alguns pontos nos ii. E preservar a memória, porque às vezes é preciso!

Falemos rapidamente do uso do termo “negociatas”. Entidades que se pretendem sérias, devem ter cuidado na utilização das palavras. Ora, o termo “negociatas” tem um sentido pejorativo, em que, no mínimo, se insinua a prática de factos ilícitos. Se a dita Associação tem conhecimento da prática de quaisquer actos que configurem um ilícito criminal, ou mesmo contra-ordenacional, deve cumprir a sua obrigação cívica de os participarem às entidades competentes para a sua investigação e eventual procedimento penal. Se não conhecem, então seria melhor estarem calados e abster-se do uso de palavras equívocas. Pessoas tão preocupadas com questões (supostamente) tão nobres e importantes, deveriam pensar bem antes de atirar lama para cima de pessoas – individuais ou colectivas.

Quanto à sustentação de que o projecto em causa tira qualidade urbanística, paisagística e de vida à zona do Restelo, e à afirmação de que o Estádio nos foi oferecido pela Câmara nos anos 90, parecem assentar numa ignorância tão colossal que nos revolve as entranhas - e dizemos ignorância porque, a não a ser ignorância outra coisa nos não ocorreria senão má fé, no que não queremos acreditar.

Deste modo, pensamos que devemos aclarar a realidade.

Outros, muito melhor que nós, se podem pronunciar, se já pronunciaram, ou podem ainda pronunciar (se necessário) sobre o cumprimento das Leis e Regulamentos aplicáveis, sobre o enquadramento paisagístico, sobre questões de volumetria, etc. Apenas gostaríamos de acrescentar que é estranho que, pelo menos que tenhamos conhecimento, se não tenham levantado semelhantes protestos contra outros edifícios levantados à volta do Estádio – esses, sim, bastante questionáveis do ponto de vista estético e de enquadramento arquitectónico e paisagístico. Mas, também aqui, não queremos pensar coisa diferente de que na altura a tal Associação de Moradores não estava organizada e/ou os seus elementos motrizes não moravam pelas bandas do Restelo...

Mas, se noutros tempos não moravam na zona do Restelo e/ou, de qualquer forma, pelos vistos, conhecem só uma história completamente parcial e deturpada, fica aqui o esclarecimento:

Quando outros clubes de projecção nacional (inclusive sediados em Lisboa, e provavelmente sem que ninguém se atreva a questiona-los com abaixo-assinados), não se preocupavam muito com tais coisas, o Belenenses investiu seriamente em instalações desportivas na 2ª metade da década de 20, e na década de 30.

Daí resultou, no Estádio das Salésias, mais tarde chamado “José Manuel Soares Pepe” em homenagem ao nosso malogrado jogador e símbolo clubístico, coisas raras ou únicas na época:

- Um estádio relvado (o primeiro em Portugal);
- Um estádio com bancada coberta (o primeiro em Portugal);
- Um campo de treinos além do campo principal (julgamos que também o primeiro no nosso país);
- Um ginásio e outros espaços para as modalidades amadoras, na altura chamadas “modalidades pobres”.

Porque, na tal Associação, e nas cabeças de certos jornalistas que da história só conhecem as últimas semanas, pode surgir a ideia que, desse esforço, só beneficiou o Belenenses, lembramos que, durante anos, esse mesmo Estádio das Salésias permitiu à selecção nacional jogar num estádio com apresentação digna e com relvado – o que era o único a propiciar em Portugal. Quem sabe isto lhes diga alguma coisa, agora que se tornou colunável ir apoiar a selecção nacional... com trajes e pinturas a rigor para aparecer na televisão, nas revistas e nos jornais, depois de deixarem os gregos a jogar em casa, apesar de só ocuparem 1/4 do estádio!

O Belenenses gastou nessas instalações o que poderia ter gasto – e outros gastaram - em jogadores para reforçar as suas equipas.

No entanto, no fim da década de 40, o clube foi intimado a deixar as Salésias, que iriam ser sacrificadas a uma urbanização. Que, curiosamente, nunca chegou sequer a ser iniciada.

Contrariamente a outros clubes, de Lisboa e não só, que receberam dinheiros públicos pelos terrenos que deixaram vagos, com instalações a anos-luz das Salésias, além de ainda lhes serem cedidos outros terrenos para a construção, o Belenenses não recebeu nada por deixar as Salésias. Apenas foi oferecido um terreno vazio (e que terreno e em que estado!), em troca dos terrenos e das instalações magníficas que teve de abandonar. O que, meus senhores, é bem diferente daquilo de que beneficiaram outros clubes... clubes que, mais tarde, receberam ainda mais terrenos quase ao preço da chuva e os venderam à mesma entidade pública por cerca de dez vezes o valor de origem!

Sendo obrigado a deixar as Salésias, o Belenenses partiu, de mãos a abanar, para um novo e colossal esforço: a construção de um novo estádio e restantes instalações, agora na zona do Restelo.

Mas o que era então o Restelo, hoje um “local raro de qualidade urbanística e de vida, etc”? Vamos dar a palavra a quem viveu os factos. No caso, a Acácio Rosa. Para quem só conheça o que a Associação conhece, e que parece ser muito pouco, convém dizer que Acácio Rosa não foi “apenas” presidente, seccionista, praticante, treinador e tudo o que é possível ser no ”nosso” Belenenses. Foi, por exemplo, o primeiro seleccionador nacional de andebol; desempenhou diversas funções dirigentes em federações de diferentes modalidades e em organismos oficiais; recebeu condecorações dos governos português e francês. Portanto não era nenhum louco fanático do Belenenses.

Descrevendo uma reunião na Câmara há 55 anos atrás, em que esteve presente como dirigente do clube, escreveu ele: “Apontaram-nos em Belém uma mancha toda a negro na planta da cidade de Lisboa, uma pedreira a que a Câmara não sabia que destino dar”.

Assim, o Belenenses foi transformar a pedreira e o sítio desolado que era o Restelo; foi abrir caminho à sua evolução para o belo espaço urbanístico que é hoje, e de que beneficiam os que, não obstante, no seu autocentramento egoísta, não se importam de pôr o clube em cheque; foi permitir que terrenos nas zonas adjacentes fossem notados, fossem valorizados, fossem, enfim, constituir zonas consideradas privilegiadas, permitindo à Câmara realizar negócios extremamente lucrativos com a sua venda.

E, já agora, até por comparação com outros estádios construídos, pela mesma altura, por outros clubes de Lisboa, arquitectonicamente desinteressantes e monótonos (para não dizer “feios”), o Belenenses construiu o seu estádio de acordo com elevados e magníficos padrões estéticos, inclusivamente no seu enquadramento, os quais lhe conferem uma beleza única – uma autêntica jóia! Em recentes melhoramentos, manteve os mesmos altos padrões. De modo que o Belenenses deveria ser um exemplo a apontar, em vez de um alvo a atingir. Sobretudo por aqueles que lhe devem o facto de existir a tal zona “de grande qualidade” – que, outrora, foi uma pedreira, uma mancha negra, algo a que não se sabia o que fazer!

Mas, para esse esforço de construir o Restelo, mobilizou e exauriu o Belenenses todos os seus recursos, apesar da dedicação de tantos e tantos sócios. E isto, repetimos, depois de notificado para abandonar, de mãos vazias, tudo quanto de excelente e pioneiro já construíra nas Salésias, e sem apoios estatais ou autárquicos, como depois se generalizaria. E para que não pareça que estamos a inventar, cabe aqui citar palavras do Ministro das Obras Públicas, aquando da inauguração do Estádio do Restelo, em 1956: “Será oportuno lembrar que se trata, não da primeira mas, sim, da segunda grande realização do Belenenses em matéria de instalações desportivas. A primeira foi a do velho campo das Salésias (...) a sua construção fez furor na época e representou, sem dúvida, um enorme esforço, pois foi executada quando o Estado ainda não concedia os valiosos subsídios que mais tarde veio a atribuir a realizações dessa natureza”.

Devido a todos os meios que mobilizara para construir sucessivas instalações, que além do mais, permitem anualmente a prática desportiva a milhares de jovens, ficou o Belenenses não só obstaculizado para competir com as mesmas armas com os seus rivais, nomeadamente os outros dois maiores clubes de Lisboa, como progressivamente endividado, em especial para com a Câmara.

Não podendo usar os expedientes e pressões que actualmente outros clubes usam para não pagar as suas dívidas, teve o Belenenses que acordar com a Câmara o “resgate” do estádio. Ou seja, vítima de uma exigência draconiana sem paralelo no desporto português, ficou sem a propriedade do estádio que com tanto esforço construíra. E, durante oito anos, de 1961 a 1969, tinha que pagar quantias astronómicas para o poder utilizar. E, cúmulo das humilhações e desventuras por que teve de passar, viu os seus troféus despejados, encaixotados na rua, tratados com desprezo como se fossem as armas de um vilão – e não os signos visíveis de um esforço e de uma dedicação dignos, honrados e gloriosos de gerações de belenenses!

Ergueu-se mais uma vez a alma do “belém” – e, mais uma vez, o clube resistiu. Como tem sabido resistir desde a sua fundação, logo contrariada e apedrejada... Assim, em 1967, a Junta Directiva do Clube, tendo à sua cabeça o Dr. Gouveia da Veiga, o Dr. Coelho da Fonseca e Acácio Rosa, entre muitas outras batalhas, iniciou a luta para reaver o estádio.

Veio a conseguir, enfim, a concessão do direito de superfície, depois de uma mobilização por todo o mundo onde havia portugueses. Foram dezenas e dezenas e dezenas de milhares de assinaturas a reclamarem a devolução do estádio ao Belenenses. Só no Brasil, foram mais de 50.000! Nada, portanto, com que o abaixo-assinado da tal Comissão de Moradores se possa comparar.

Ainda assim, continuou o Belenenses a pagar uma espécie de renda à Câmara, pelo tal direito de superfície.

Até que, finalmente, no início dos anos 90, depois de lutas infindáveis, depois de um imenso tributo pago, depois de ver outros clubes lisboetas a usufruir de mordomias de que nunca beneficiámos – e mesmo assim, a protestarem! –, ficou o Belenenses novamente proprietário do seu estádio. Que enorme preço teve que pagar - um custo de que ainda não nos recuperámos!

Pelo meio, teve o clube que resistir a outros assédios às suas instalações, que fazer face a outras frentes de batalha. Em 1977, construiu o seu pavilhão gimnodesportivo. Ainda se celebrava a inauguração, só quatro escassíssimos dias tinham passado, e já a Câmara – que, entretanto, descobrira a existência, perto do local, de uma capelinha de que há muito se esquecera e de que nunca cuidara - ameaçava derrubar o pavilhão, com as suas bulldozers! Durante dois anos, mais uma vez o clube teve que lutar com coragem, ânimo e determinação, destacando-se nessa luta, o actual Presidente, Dr. Sequeira Nunes.

Por tudo isto, só podemos concluir dizendo à tal Associação de Moradores: deixem-nos em paz, deixem o Belenenses respirar e ter as suas fontes de receita, como outros clubes!

Ou por palavras diferentes: não nos “chateiem” e cuidem antes de fazer face à prostituição que grassa em zonas do Restelo – isso sim, algo que não deveria existir! Ou, então, vão pregar para outras freguesias!

Viva o Belenenses!

Sem comentários: