quarta-feira, maio 18, 2005

Que é feito do Belenenses?

Eduardo Torres

Tenho 44 anos, recém celebrados. Estou na meia idade. Não sou um ancião. Digo isto, à guisa de introdução, para que os mais jovens não pensem que os tempos a que, comparativamente, me vou referir, foram há alguns 50 ou 60 anos atrás. Para mim, foram ainda ontem, mesmo se para os de vinte e tal anos podem parecer épocas da pré-história.

Nunca o conheci o Belenenses dos tempos da grande glória. Nunca vi jogar os nossos maiores ídolos. Nem sequer me lembro do Vicente. O Belenenses com que eu, menino, me afeiçoei até à paixão, vivia em plena crise, financeira e de resultados, despojado do Estádio que com tanto esforço construíra e que Acácio Rosa, Coelho da Fonseca, Gouveia da Veiga - e outros - tentavam a todo o custo recuperar.


(continua)...

Já nesses tempos se falava saudosamente do tempo em que fôramos campeões. Já nesses tempos, Pepe, Augusto Silva, Amaro e as Torres de Belém eram mitos “entre as brumas da memória”. Já nesse tempo Matateu se havia tornado um D. Sebastião da nossa (des)esperança. Depois do promissor início da década de 60, com a Taça de Portugal conquistada ao Sporting, a Taça de Honra com aqueles 5-0 ao Benfica, a vitória na Luz face ao Benfica, na última jornada, com este a ter que esconder as faixas que diziam campeão invicto (tudo isto em 1960), a partir da sua metade, o Belenenses descaiu para os 7ºs e 8ºs lugares. Parece igual a hoje.... Mas era tão diferente!

Mesmo em crise, com resultados que não eram já os de um clube grande, o Belenenses era um grande clube em tudo. A sua alma de gigante pulsava apaixonadamente. Não havia falhas nem incoerências no discurso da grandeza. Ninguém ousaria dizer “os grandes” excluindo-nos dele. Havia memória e respeito pelos Maiores do nosso clube. Não havia este despudor com que são os próprios autoproclamados adeptos a amesquinhar-nos. E todos os anos cerrávamos os punhos e os dentes de garra e de ambição para voltar lá acima (como o fizemos entre 1972 e 1976). Todos os anos, mesmo a seguir a um 7º lugar, lá estava o Belenenses entre os candidatos ao título. Claramente. De peito feito. Era o nosso orgulho!

Sim, por tudo isso, éramos orgulhosos da diferença. Ser do Belenenses significava resistir a mil e uma desventuras e permanecer de pé, altivamente, cientes da grandeza dos alicerces do clube. Significava, ainda, renunciar aos expedientes e à insuportável arrogância dos nossos rivais do Sporting e do Benfica e sermos considerados tão educados quanto indefectivelmente apaixonados pelo nosso clube – na vitória como na derrota, ao contrário de outros.

Já contei e desculpem repetir-me. A primeira vez que me lembro de ir ver o Belenenses da minha vida, ao nosso belo e encantado Restelo, foi em 1970, num sábado à noite, à 4ª jornada do Campeonato, contra o Tirsense. Meirim era o treinador e prometera voltar a fazer do Belenenses campeão. Desportivamente, falhou e salvou-nos o grande Homero Serpa. Mas galvanizou, de novo, a alma belenense e fez aumentar as receitas. Não vou discutir os méritos e deméritos de Joaquim Meirim, tanto mais que ele já morreu. Só quero frisar que o Belenenses ainda tinha substância para se galvanizar, para fervilhar de crença, paixão e entusiasmo. Hoje, receio que já não tenha. E isso faz toda a diferença....

À 1ª jornada desse campeonato, os adeptos azuis quase encheram os 40 e tal mil lugares do Restelo para ver o triunfo sobre o V.Guimarães. Em seguida, fomos jogar às Antas e o estádio encheu-se de mais belenenses do que portistas. E, naquela 4ª jornada, contra um modesto Tirsense que não trazia ninguém, o estádio devia estar para aí com 30 mil pessoas – sem borlas. Estávamos apertados na central. A casa quase veio abaixo com os aplausos e clamores de incitamento quando a nossa equipa entrou em campo. No intervalo, dezenas ou centenas de adeptos andavam à volta da pista com faixas e bandeiras. Tínhamos todos os signos de um grande clube.

Não percebo... para onde foram esses Belenenses que assim invadiam a pista? Para onde foram aqueles para quem olhávamos e que respiravam belenensismo por todos os lados, belenensismo evidente, puro e radical (de raíz, não de fanatismo), belenensismo que não se abastardava com “mas também sou do...”? Para onde foram os que se levantavam, aos milhares, em aplausos, em palmas, em gritos de “Belém, Belém, Belém” quando se acercava o fim de um jogo e estávamos a ganhar aos nossos verdadeiros rivais – os do Benfica e os do Sporting? Para onde foram aquelas hostes de Belenenses que, em qualquer lugar, por exemplo no velhinho Pavilhão de Desportos, equilibravam ou até superavam em incitamentos, os dos encarnados ou verde brancos, nos jogos de Andebol, de Basket, de Hóquei em Patins? Para onde foram aqueles que, na tarde de glória de 12 de Outubro de 1975, quando vencemos o Benfica por 4-2, e assumimos a liderança, num Restelo com 60 mil pessoas, com gente por todo o lado, nas torres de iluminação, nos pilares do Topo Norte, e pelos terrenos até lá acima, fizeram ceder as protecções no final do jogo, invadiram o campo, levaram os nossos jogadores em ombros, triunfo? Onde estão aqueles belenenses que choraram de raiva e desespero quando descemos de divisão pela 1ª vez, aqueles que invadiam os campos de todo o país, para trazer o nosso amor - a nossa paixão - de retorno ao seu lugar, os que deliraram em Sesimbra e quase lotaram em seguida o Restelo na festa da subida, e na festa do 1º jogo de regresso?

Sim, para onde foram, onde estão? Quem e o quê os levou? A morte? A insuportável tristeza? Ou, talvez, esta aragem fria de indiferença que apaga a paixão, que tem horror à paixão, que sepulta em vez de alentar a paixão?

“Meu Deus, somos tão poucos!”, já dizia Acácio rosa, na última frase do seu último livro, em 1991? Que diria ele hoje? Que diria hoje ele ao ver as suas palavras, de aviso, e que foram ridicularizadas como pessimismo de um velho saudosista-tonto, a tornarem-se tristes realidades? Que diria ele ao ver o Restelo deserto? Que diria ele ao ver esta gente que é só mais ou menos Belenenses (não sou eu que julgo; são as afirmações próprias), esta gente inerte e sem calor, incapaz de aplaudir, incapaz de se comover, incapaz de e arrebatar com o nosso Belenenses, esta gente que parece supor que o Sr. Matias foi o nosso 1º presidente, que o Marinho Peres foi o nosso 1º treinador, que a tradição são os últimos 4 anos (ainda há dias pasmei ao ler que tradicionalmente perdíamos em Barcelos...até a tradição de 14 anos se desconhece – e não se comprou a Agenda do Belenenses...), que julga que o 8º lugar em que estamos orgulha a nossa história e nos acrescenta algo, que acha normal que o speaker, num jogo Belenenses – Benfica, no nosso Restelo, diga “Trapattoni vai mexer na equipa”, como se estivesse em campo neutro, como se fossemos adeptos do futebol e não do Belenenses, como se interessasse muito o nome do treinador do Benfica (será que ele também diria o nome, se fosse o do Moreirense)? e as mexidas na “equipa” (qual?)???

Que é feito do Belenenses que eu e outro conhecemos? “Neti, neti (1)” – não é isto, não é isto! Ainda estará vivo? Ainda pode ser reanimado? Não percamos tempo – porque pode ser tarde demais... Que haja alma e paixão; e que com ela se exija, aos outros, e, antes de tudo nós próprios, competência, ambição, presença e trabalho exaustivo.

Acorda, Belém! Amanhã pode já ser tarde!


(1) palavra sânscrita.

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