Sou um adepto de futebol. Crónico. Considero o futebol um acto de religião. Pura. E o resto é conversa.
Quando tinha cinco anos perdi-me de amores por um preto chamado Mapuata, zairense, ponta de lança, e jurei fidelidade canina ao Clube de Futebol “Os Belenenses” no dia em que ganhámos a Taça de Portugal ao Benfica. Foi em oitenta e oito, eu perdi a voz, e nunca uma manifestação colectiva me transmitiu, desde aí, a sublime emoção dessa tarde. Dizer que chorei de alegria é manifestamente pouco: nessa tarde, por duas horas, eu fui a plenitude da alegria, eu próprio fui a revelação física da alegria. E mais nada.
O clube a que pertenço é pequeno. Na minha opinião, o Belenenses traduz, em micro-cosmos e para o universo futebolístico, a mesma identidade que Portugal apresenta perante a história: uma entidade relevante, com um passado forte mas não o suficiente para ter sido glorioso, e um presente envelhecido, pouco pujante e em constante luta (e com cada vez menos meios) para sobreviver entre entidades muito mais poderosas. Acrescente-se que é muito difícil ser adepto de um clube pequeno em Portugal.
Aquilo que afirmo seria aceite com naturalidade em outro qualquer país da Europa. De Espanha aos Urais existe a tradição instituída de que quem gosta de futebol pertence ao clube da terra onde nasceu. É certo que existem clubes grandes em todos os países europeus, mas nenhum em que um clube detenha a simpatia de quase três terços da população como acontece em Portugal. Em Sevilha, as pessoas são do Sevilha ou do Bétis, em Nice as pessoas são do Nice, em Manchester do Manchester (ou do City) em Genk do Genk, em Estugarda do Estugarda, etc etc. Os estádios das equipas ditas médias têm assistências globais de, pelo menos, meia casa. Em Portugal as coisas passam-se de forma totalmente diferente.
O único clube em Portugal que reflecte o diapasão europeu é o Vitória de Guimarães. Instituição valorosa, bastante antiga, representante fiel do orgulho das gentes de Guimarães, o Vitória resulta enquanto representante da sua cidade como consequência do sentimento de grandiosidade vimaranense. A fundação do país, a história associada ao mito, talvez faça de Guimarães uma cidade mais europeia que as restantes urbes nacionais. É claro que temos o Braga a aglomerar cada vez mais adeptos, mas creio que o motor desta adesão centra-se acima de tudo no novo estádio e na capacidade económica da região, ansiosa por ganhar qualquer coisa. O Boavista já viveu esta fase, mas actualmente voltou à realidade e a ter o estádio às moscas.
Na senda do Belenenses que, apesar de tudo, continua a ser o quarto clube português em número de adeptos, entrevejo o Vitória de Setubal: um clube histórico, com um passado riquíssimo, que funcionou antes da crise no sector conserveiro e das pescas como alto dignatário da terceira cidade do país, mas que se tem vindo a afundar e a mobilizar cada vez menos os jovens da cidade, restando, como no Restelo, os mais idosos dos tempos idos e os setubalenses de meia idade. A Académica é um caso particular devido aos estudantes mas manifesta cada vez menos capacidade mobilizadora, e o Leixões, apesar de todo o respeito que me merece, é um clube verdadeiramente de bairro.
O que não acontece na restante Europa futebolística, tem, em Portugal, o seu
expoente máximo: clubes que, pura e simplesmente, não existem em matéria adeptos: o Estrela da Amadora é paradigmático: numa das zonas mais densamente povoadas do país, o Estrela nunca consegue levar mil adeptos à Reboleira. O União Leiria, representante de uma região geograficamente despolarizada e bastante forte economicamente, não tem absolutamente ninguém a ver os seus jogos. O mesmo se poderá dizer da Naval 1º de Maio, do Gil Vicente, do Estoril, do Beira-Mar, do Aves, entre muitos outros, da primeira e da segunda liga.
Quais as causas deste facto? Porque é que existem clubes profissionais de futebol em Portugal que praticamente não têm adeptos? Porque é que os estádios estão vazios? Um amigo meu espanhol via comigo um jogo da liga portuguesa pela televisão (por sinal, o meu Belenenses contra o Braga) e perguntava-me jocosamente onde estavam os adeptos. Espantava-o sem dúvida que um clube que está na Taça UEFA apresentasse as bancadas praticamente vazias. O Zamora, clube da sua terra e da sua simpatia, que milita na 2ª Divisão B espanhola, nunca apresentava menos de 6,7 mil espectadores por jogo. O que é que se passa?
É o preço dos bilhetes? São os jogos à sexta e à segunda à noite? Os ingleses jogam ao domingo e à quarta e os estádios estão sempre a abarrotar! Tudo bem que eles têm mais dinheiro que nós, mas isso não é argumento quando a diferença se salda em jogos com assistências de 20.000 para cima contra assistências de 3000 para baixo! É a fraca qualidade dos desafios? Para mim essa questão é um mito e não há diferença qualitativa nenhuma entre um U.Leiria-Nacional e um Gronigen-Roda e, no entanto, o jogo em Portugal tem 500 pessoas a assistir e o holandês tem, pelo menos, 10 mil.
A meu ver, os portugueses em massa resolveram curar o seu mal-estar permanente com vitórias no futebol. O miudo de Chaves aprende bem cedo que a forma mais garantida de obter alguma euforia, algum peso e importância enquanto indivíduo, é declarar-se do FC.Porto e esperar pelo título final que o levará ao rubro de glória. Em Portugal, o futebol não possui espiríto desportivo que extravase a ânsia de ganhar, e de ganhar sempre. Por isso é que o Benfica foi o que foi nos anos sessenta: porque ganhava e fazia-o quase sempre. Por qualquer razão não nos associamos à luta, às dificuldades e ao carácter dos clubes representativos da àrea do que somos todos os dias, porque isso não satisfaz o nosso cérebro farto de derrotas. Tendencialmente, veneramos os fortes porque eles encarnam tudo aquilo que nunca seremos individualmente. E normalmente, não cedemos, somos totalmente intransigentes: os grandes têm de ganhar porque só os grandes contam. E nunca haverá nada mais fascista dentro de um estado democrático do que toda a estrutura e organização do futebol português.
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